quarta-feira, 20 de novembro de 2013

No ar



Vejo rastros de luz. Linhas, sinais, raios no céu. Eles vem através de nós, se entranhando na gente, passando eu pra você e você pra mim; fincando os frutos dessa conexão inegável e, simultaneamente, fazendo-os dançar. E os nossos pedaços vão caindo pelo chão, voando pelo ar. Gotas de mim e de você, partículas, matéria. Elas vem se misturando e transformando-se pela influência do externo; do outro; de nós, juntos. As gotas, os pelos, os suspiros. Eles vem caindo, dançando, bem suavemente. E tudo acaba numa eterna troca, que na verdade não acaba nunca. 

meia dúzia

Sonhei contigo ontem, ché-
ri.
Eu juro.
Depois de tantos meses sem bei-
jos
sem to-
que
sem chei-
ro
sem nós naquele emaranhado de cor-
pos
onde não se divide nós do-
is
não se vê onde eu aca-
bo e onde come-
ça vo-
cê.

Mas achei melhor nem te falar.
Vivemos nesse pacto
de calar verda-
des.
Nao sei se,
assim,
achamos que a fazemos maiores
ou se é fraqueza mesmo
pu-
ra
e simples-
mente.
Quem sa-
be?

Pena.
Íamos bem.
Te dei o meu telefone e to-
do,
simplesmente to-
do,
o meu corpo,
entregue
como se tivesse sido sem-
pre
teu.
Como se cê fosse nada menos qu'a
chave
para abrí-
lo
por com-
ple-to,
a chave que por tanto tempo
procu-
rei.

Senti saudades.
Ás vezes parecia até
qu'eu ia morrer de-
las.
Mas não, fui sobre-
vivendo
sem ti
me re-
fazendo
entre um passo e
outro
entre uma dan-
ça
e outra mais.

E fiquei bem.
Parei de te re-
moer,
até que chegou essa noi-
te
em que eu sonhei
com
vo-
cê.

Engulo a saliva,
respiro fun-
do,
busco afastar os pensamen-
tos,
mas eles insis-
tem em
vir
e me confun-
dir.

Pensei que cê iria me visitar, afinal
te passei meu endere-
ço
e até disse que era bem-
vindo
e que esse tam-
bém
é um bom país
pra se passar aniversá-
rios.

Mas cê não entendeu.
Ou não escu-
tou.
Ou,
pior,
escutou,
entendeu
e não quis.
Mas prefiro acreditar nas primeiras hipó-
teses.

Eu teria te esperado.
Pelada,
em roupa e pêlo
mas com pele de so-
bra
e cheia de
a-
pelo.
Mas acontece que
cê nunca apare-
ceu.

No meu sonho,
po-
rém,
cê vinha
bonito e pronta-
mente.

Lutávamos contra o outro
e contra nós
mes-
mos,
em forma de sexo.
Disputa justa,
mas sem re-
gras.
Vale tu-
do.

E, então, calamos mais uma
vez.
E eu perdi o resto da sanidade qu'eu
inda ti-
nha
olhando direta-
mente
pros seus olhos
infini-
tos.
Parece que cê fez de propó-
sito,
quem mandou olhar
de vol-
ta?

E, depois de to-
da
a entrega,
cê partiu.
Mas me deixou,
antes,
uma carta na me-
sa
da sala.
Me tremi to-
da
pra lê-
la,
mas li.
Nela, meia dú-
zia
de pala-
vras.
Mais do que suficien-
tes.
Expressando tudo que tam-
bém trans-
borda
do meu pei-
to
já há tan-
to.

Me aceita, meu
bem.
Se ache-
ga,
me bei-
ja
e me diz pra
ficar.
What's the point,
ché-
ri,
de se se-
pa-
rar
sí-
la-
bas
assim sem nem
pre-
ci-
sar.
Me deixa te mostrar que a gente cabe sim numa mesma frase,
e inda pode ser coeso.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

caidinhos

cê me disse que vê muita vida
nestes meus olhos amarelos
e disse assim mesmo
"amarelos"
e,
em seguida,
discutimos por longos minutos
sobre o tom da cor dos tais

cê disse que relutou muito
em se perder neles
mas que desistiu, já fraco
- era inútil, concluiu

por último, ainda disse
que a forma deles, caidinhos
só dá a eles mais humanidade,
mais subjetividade,
mais força,
uma vez que cê vê a força como
coragem de mostrar as fraquezas
já que essas,
por
sua
vez,
habitam todos nós,
por mais que mintamos
escondamos
e disfarcemos

- é humano, bonita,
ser sensível e passível de ser
mudada, tocada e d'amar

é preciso ser muito macho pra tal,
masculinamente feminina


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O que seria?

O seu quarto tem esse mistério engraçado que de mistério nem tem tanta coisa assim. É que a luz está acesa e, de repente, apaga. Sempre foi assim. Mas não tenhamos pressa, pois minutos depois, sem regra alguma –pelo menos ao que nos parece-, ela reacende. O tal do mistério provavelmente se dá por um simples mal contato. Alguém não deve ter arrochado a lâmpada como ou tanto quanto deveria. Provavelmente foi isso, mas eu gosto de acreditar que é algo a mais. Como se o quarto tivesse vida. E eu realmente acho que ele tem um pouco, sabia? Cada informação se complementa e nos ajuda a completar esse quebra-cabeça que é esse cômodo onde você habita. As primeiras páginas de jornal pela parede, em linhas retas. A cama gigante com uma tanga de tartaruga vermelha e amarela acima dela, presa a outra parede. Os dois sofás, apertados no resto do espaço e convidativos como só eles, distribuindo aconchego. A mesinha de centro com as garrafas de dias atrás, os isqueiros e cinzeiros. E, claro, o resto do suco de laranja natural. A tevê que mal funciona à esquerda da mesa e as duas, juntas, tampando parcialmente a enorme janela que nos lembra que há um mundo lá fora. A janela, no momento, disfarça essa sua função, escondida por uma cortina laranja, bem bonita. E você, sentado no sofá à minha direita, com as pernas de índio, portando um sorriso amigo, testa os isqueiros que estão a sua frente pra ver se algum funciona. O primeiro, nada. O segundo arrisca soltar uma faísca, mas decepciona. O terceiro, idem, mas o quarto funciona. Você então o acende triunfante. Nessa hora, a lâmpada viva do seu quarto resolve apagar-se. Eu te olho fixamente. A chama do isqueiro queima o seu cigarro. Você traga com vontade, uma tragada daquelas há tanto ansiada. Prende, puxa e solta a fumaça em pequenas bolas. A fumaça sobe e eu observo a sombra dela na cortina laranja. É que você está brincando com o isqueiro agora e a sua chama, por sua vez, está iluminando a cortina. Que bonita a fumaça subindo, no seu tempo, anestesiando os nossos corpos, e todo o entorno. Eu me rendo ainda mais ao sofá, estou prostrada. Meus dedos estão separados um dos outros, abertos, unidos ao tecido que forra esse tal de sofá que, originalmente, ficava na sala. Que bom que decidimos trazer pro seu quarto, fica bem melhor aqui. Você abandona o isqueiro na mesa e sentimos a escuridão momentânea do ambiente. Eu respiro fundo e te sinto, apesar de não nos tocarmos. Sorrio de boca e olhos fechados, mas de alma aberta. Penso que esse deve ser o sorriso mais sincero, justamente esse sorrido no escuro. Não passa pelas nossas mentes, quando sorrimos esse sorriso, a intenção de mostrar para o outro que estamos felizes, satisfeitos, bem. Ele nada vê, não temos luz. Nós nada mostramos, apenas somos. É aquele sorriso de dentro pra fora, de quem sorri quase que por não resistir. O sorriso começa pelo coração, passa pelas veias todas e sai pela boca, anônimo, livre. Não está indo para lugar nenhum, ele simplesmente é, aqui e agora, sem olhares ou julgamentos. Me sinto feliz. Sinto o imã nesse sofá, nessa casa, nesse bairro e cidade. Sinto o imã que me puxa bem forte. Não tinha jeito, era pra eu ter vindo, já nem imagino um outro roteiro. O que seria de mim sem a chegada acompanhada de frio na barriga (e nas mãos; e nos pés; e no rosto; e na alma?). Afinal, era inverno quando eu cheguei por essas terras. O que seria de mim sem a solidão mais solitária de todas? Sem os beijos em mim mesma, debaixo dos edredons? Sem a dificuldade da língua, da falta de toque e de violão? Sem a estranheza de corpos, de clima e a ausência de miscigenação? O que seria de mim sem o primeiro abraço sincero em dias tão frios, sem as primeiras confissões do amigo, sem a língua materna proferida por ele que veio esquentar o meu coração? E ainda, o que seria de mim sem elas, tão práticas e simplistas, sempre em busca de uma festa e de um vinho bom? E, mais, sem aqueles que chegaram e me fizeram sentir lar, carinho, afago, pele, apego, cabelo, apelo. O que seria de mim sem eles? E as andadas, caminhadas, sozinha ou acompanhada. Longas, demoradas, de volta pra casa, principalmente. Aquele momento pra pensar. Primeiro, eu ia agasalhada e, depois, conforme foram passando os meses, os casacos foram sendo guardados na mala, substituídos por finos Cardigans até que desaparecessem. E, ainda, o que seria de mim sem as visitas? Tantas que me trouxeram um pouco de casa, de lar. O riso do amigo antigo. O reconhecimento do outro e de mim. Tantas histórias, tanta vida. Seguimos juntos, mais pra lá ou pra cá, mas sempre como parte um do outro. E o que seria de mim, ainda, sem os cappuccinos nas madrugadas na companhia do amigo-irmão que eu nem posso dizer que fiz, e sim que reconheci, por essas terras francesas? Cappuccino esse regado por histórias mil, sem roteiro, sem ordem, sem vez e, aparentemente, sem porquês. Mas tem porquê em tudo. Ou em quase tudo ou, pelo menos, em muita coisa. Será mesmo? E sem as racionalizações inacabáveis, como eu ficaria? Certamente mais sã, mas também mais vazia. E sem a ansiedade, sem o coração acelerado, sem o medo? E sem o primo, seja por skype, por email, por mensagem, ou por telepatia até. E sem ele, o que eu seria? E sem a dança, sem o corpo, sem o tempo pra puxar o ar e piruetar? Sem as viagens, sem as voltas pra casa, sem as dores nas costas pela mala pesada. O que seria? Sem o verão que foi chegando, sem os dias no parque deitada na grama, sem a camaradagem. Sem o cabelo curtinho, sem o olhar penetrante, sem o vestido vermelho. Sem as noites embriagadas, sem os livros engolidos, sem as páginas rabiscadas. Sem os papéis acumulando, sem os números atormentando, sem a saudade de casa. Sem os sonhos alucinógenos, sem as interpretações ora tranqüilizantes, ora apavorantes, mas nunca desconsideradas. Sem as aulas que me inspiraram, sem as madrugadas acordada repassando cada uma das possibilidades. Sem a imaginação, sem a verdade, sem o sonho, sem tantos adeus. O que seria de mim? Sem a sua barba embarassada, sem o riso solto do outro, sem a tatuagem daquela. Sem a bicicleta de dia ou de noite. Sem as descidas com o vento nos cabelos e no peito, sem a mão no freio. Sem as vistas da cidade, sem as novidades, sem aqueles cantinhos. Sem o medo, sem os resultados, sem as soluções. Sem seus envelopes que sempre traziam boas novas. É que ele disfarça e só me anuncia o que me cura, nunca o que machuca. Sem a falta do pai, sem a mudança do amigo, sem o tempo que nos separa uns dos outros. E cava; cava fundo, nos deixando cheio de buracos, cicatrizes, machucados. Sem a Itália, sem a pizza, sem o chianti. Sem o calor, sem a praia, sem o bronzeado. Sem os cachos de cabelo dela, sem a risada gostosa, sem as reflexões, sem o escrito no muro na piazza Santo Spirito. Sem nos perdemos, sem nos encontramos, sem os anjos pela estrada. Sem as fotos dos pés, sem a calma, sem as piadas. Sem os amigos preservados pelo tempo e distância. Sem a vista pro mesmo palácio depois de dois anos. Sem o reencontro e sem o abraço. Sem as cervejas no metrô, sem as conversas se poucas palavras e muito significado. Sem as marcas da guerra da Bósnia que também marcaram a mim. Sem o narguilé, os relatos e as marcas de bala nos prédios da cidade. Sem a mudança de casa, sem as malas pesadas, sem a ansiedade no peito. Sem a arrumação sofrida, sem a estranheza do momento. Sem a visita deles, sem os sofás abertos na sala com a gente prostrado. Sem os engradados de cerveja quente e sem a geladeira para gelá-los. Sem a fila de velovs, sem as escaladas de prédios e árvores. Sem os ônibus noturnos, sem o incômodo na lombar, sem as passagens baratas. Sem as informações na rua, sem os mapas mentais; sem as setas, sem as cabanas, sem o wi-fi. Sem o cabelo vermelho, sem o abraço da mãe, sem o esforço, sem as palavras de paz. Sem os mercados, sem os supermercados, sem os cartões-postais. Sem os olhares, sem os filmes, sem as lembranças, sem os suspiros. Sem as surpresas, sem os drinks, sem o italiano, sem as mãos atadas. Sem a volta pra casa, sem o resmungão. Sem o show inesperado, sem correr abraçadas, sem o prosecco do bom. Sem aniversário, sem a toca de jazz, sem ela feliz. Sem a nota que toca, sem a vontade de dançar, sem o francês cantado, sem. Sem a despedida, sem o tramway solitário, sem o soluçar. Sem as brasileiras verde-e-amarelas, sem o feijão preto, sem plantar bananeira. Sem a simpatia alheia, sem a sorte grande, sem essa missão. Sem eles, sem a fumaça, sem união. Sem MPB, sem samba, sem zaz, sem batidão. Sem batucada, sem bagunça, sem bordel, sem alienação. Sem beber no quai, sem amigos, sem abraço, sem vinho barato. Sem risada, sem coloc, sem festa, sem baseado. Sem bolo de chocolate, sem maldade, sem saudades nem novidades. Sem planos. Sem separação, sem divisão, sem “por que nós?”. Sem a carta da vó, sem choro, sem lembrança. Sem pressão, sem motivação, sem fita métrica. Sem vontade, sem boca, sem cafuné, sem palavrão. Sem dicionário, sem armário, sem armadura, sem porão. Sem contagem regressiva, sem frio na barriga, sem vento na cara. Sem volta do inverno, sem cinema, sem marca na cara. Sem sinceridade, sem riso engasgado, sem turbante. Sem escada, sem degraus, sem olhar pra frente, sem um de cada vez. Sem conquista, sem chegada, sem volta, sem palavra, sem vestígio, sem tatuagem, sem início, sem vadiagem. Sem postura, sem pintura, sem obra-de-arte. Sem cultura, sem teatro, sem balé, nem pé. Sem pé nem cabeça, nem sentido. Sem desenho pendurado pela casa, sem mistério, sem quase nada. Sem porquê, sem limite, sem máscara, sem maquiagem. Sem cara limpa, sem corpo, sem vontade. Sem perigo, sem sexo, sem coxa, sem apelo. Nem nuca, sem olhos nos olhos, sem perdão, sem resposta, sem outra vez. Sem mistura, sem assombro, sem arte, sem ilusão. Sem tempo, sem piada, sem calma, sem crescimento, sem união nem transformação. Sem Lyon, sem cada um de vocês, sem nós, sem meu, sem eu.

domingo, 13 de outubro de 2013

psiu

Para Diego Asensi


existe um laço entre nós
ele é inegável, forte e maleável
se mexe, se adapta, se modifica
muda de cor, de material e até de sabor

mas mantém uma espécie de essência
do misturar entre eu e você
essência essa já comum a nós dois,
de casa

e flechas de flashs seus me invadem
nessa noite fria
velozes, como pontadas
me impressionando como é de costume
eu tou drogada ou isso é verdade?

respiro, abençoada pelo pôr-do-sol carioca,
de barriga pra cima, olhos fechados, no deck da lagoa
faz um ventinho bom,
solto o ar com calma

e você vem e tira de mim verdades tão grandes
e há tanto ignoradas, enterradas, refugiadas em mim
mesma

- ei, psiu, você
eu venho aqui pra dizer
um obrigada por me guiar

com um empurrãozinho ali e outro acolá

domingo, 22 de setembro de 2013

Naturellement



E tudo se deu naturalmente. Eu nem ia morar com vocês, a princípio seriam duas francesas. E tudo mudou num segundo e vocês me apareceram. Esses encontros da vida me fazem acreditar quase cegamente em destino. Parece impossível que não exista uma força bem poderosa, capaz de ter trazido vocês dois pra perto de mim e eu pra perto de vocês. Há um ímã inevitável, inegável. Nada mais explica encontros tão mágicos, era pra ser.

Depois de uns dez dias morando juntos, hoje foi o nosso momento. Obrigada pelas risadas e por terem se aberto tanto para mim e para os meus amigos. Obrigada pela atmosfera. Foi demais falar a mesma língua que vocês realmente, acho que eu nunca tinha feito isso tão bem sem ser na minha língua materna.

- C'était un bon début, je pense qu'on aura une bonne coloc
- Bah oui, je suis sûre

sábado, 21 de setembro de 2013

Carta para o meu pai




Na última noite, sonhei com você e acho que não foi à toa. Não que este tenha sido o único sonho que eu tive com você nesses últimos meses (tive alguns com o Bê também), mas dessa vez o meu sonho veio como força de impulso para que eu te escrevesse.

Não sei direito o que tem acontecido ultimamente e, me perdendo pelas minhas análises de tudo, acho que você muito menos. Mas, como tudo na vida, é perigoso a gente deixar coisas que pinicam a gente na nossa vida durarem por tempo demais, pois parece que fica cada vez mais difícil reverter a situação que ás vezes a gente nem sabe como começou. Na dúvida, melhor fazermos aquilo que nos cabe. Na dúvida, melhor dizermos o que sentimos.

Não por acaso, sonhei um sonho muito tranquilizante e perturbador ao mesmo tempo. No meu sonho, eu não tinha escrito esse e-mail e, por motivos que não haviam sido explicados, eu e você havíamos ficado muitos anos distantes. Muita coisa aconteceu, eu havia mudado de profissão, de cidade (pelo que tudo indicava, eu morava em São Paulo) e me casado. Você tinha conseguido abrir o seu negócio, o Bê tava enorme e vocês tinham um cachorro labrador. Parece que por muitos anos nós havíamos nos mantido distantes, sempre sabendo por alto e por terceiros notícias sobre o outro. Até que, lá pelos meus 40 e poucos anos, começamos a nos reaproximar com uns empurrãozinhos do Bê, que já estava com os seus vinte e poucos anos. Decidi, então, organizar e comprar uma viagem pra nós dois. Não foi nada muito sofisticado não, era um lugar tranquilo de praia no Brasil, mas foi a escolha ideal. Não sei exatamente que praia e que cidade, mas possivelmente na Região dos Lagos. Tirei, então, 1 semana do trabalho e do marido e te roubei por essa mesma semana dos seus tantos afazeres. Você tinha ficado surpreso, mas topou.

E, nessa semana, tivemos algumas boas conversas, demos outras boas risadas, comemos bolo de cenoura e ficamos os 2 lendo, um em cada rede diferente entre as tantas que estavam presas nas árvores que ficavam de frente pra praia. Cada um, um livro diferente. Separados, cada um ocupado com a sua própria leitura e mais conectados do que nunca, finalmente.

A questão é que a gente nem lembrava por que motivo não havíamos feito isso mais vezes. Não era por falta de vontade, por nenhuma das partes. Conversamos e fizemos o outro entender os nossos diferentes pontos de vista, que, a esse ponto, já datavam de um par de longuíssimas dezenas de anos.

Fica difícil explicar com palavras tudo que o sonho me disse. As cores dele eram lindas, muito vivas. E muita coisa não tinha mudado nada, apesar dos trajes já tão diferentes com os quais as nossas vidas se vestiam.

O que realmente importa é que ele me fez vir aqui pelo medo de ele se tornar realidade. Ao mesmo tempo que ele foi um sonho bom, agradabilíssimo, e que me deu vontade de fazer uma viagem dessas com você um dia - de preferência, não só uma vez -, ele foi muito perturbador porque me mostrou que por inseguranças, por pensar demais, por mágoas pequenas que vamos transformando em buracos enormes ou simplesmente por simples falta de cuidado, daqui a pouco a gente se afasta muito mais do que planejamos ou queremos de pessoas importantes pra nós.

Pois ele veio em tempo. Amanhã é seu aniversário e eu queria muito estar com você, levando um bolinho, um presente qualquer, indo no posto comprar a coca pro almoço ou apenas ajudando a colocar a mesa. Queria estar com você pra te dar um abraço gostoso, pra ver pela milésima vez os seus olhos enchendo d'água por estar com a família reunida (uma das coisas que não cansa nunca em você) ou pra ouvir as suas piadas bobas, já contadas centenas de vezes também. Queria estar com você pra acompanhar de perto os seus fios de cabelo de menos e sabedoria de mais - sem esquecer de cada marquinha que aparece no seu rosto e nas suas mãos e que só te deixam mais bonito.

Sinto muito pela minha falta. Deve mesmo ser difícil demais ter filhos e deixá-los ir pra longe da gente -  quem sabe daqui a 20 anos eu entenderei tudo isso melhor, do outro lado da mesa.

Eu espero que você esteja bem e quero que você saiba que eu não digo isso da boca pra fora ou porque estamos oficialmente no seu mês (dia dos pais e aniversário). Eu espero isso não só porque é agosto, mas porque não há um só dia em que eu não pense em você (aqui ou no Brasil, isso é o de menos).

Obrigada por ter me ajudado a me tornar a pessoa que eu sou.

Sinto saudades demais.

Amo você.

Um beijo grande.

encore une fois

através dos seus olhos,
que me abrem um horizonte novo
a cada encontro,
eu me redescubro

e aí você me traz um espelho
e me mostra mais um pedacinho de mim,
antes desconhecido

e eu transbordo de amor
encore une fois

porque você me percebe
e porque em você eu tenho alguém,
somos juntos
e o nosso entrelaçado é de alma

Manso

Para Rodri, meu querido amigo



Ei, obrigada pela oportunidade de te conhecer tão bem e tão facilmente. Com palavras de menos e sensações de mais. Obrigada pelo conforto em forma de calor humano, sem precisarmos emitir som algum. Obrigada por ser tão prático e apaixonante. Obrigada pelo riso solto, pelas sacadas geniais e pelo amor que transborda sem sufoco. Obrigada também por ter oferecido o sofá tantas vezes e por ter levado pra mim o edredom quentinho em cada uma delas e me coberto. Obrigada pelas piadas e pelas promessas. Obrigada por ter sentido, desde o princípio, reciprocamente, que nós iríamos marcar um a vida do outro. Obrigada por me ter dito isso e por ter sido você desde o primeiro minuto; por favor, nunca deixe de o ser.

Eu estou agora mesmo reparando nos nossos dedos entrelaçados. Eu mexo o polegar, acaricio o seu. Reparo nas cores, na textura, nos singelos movimentos. Olho fixamente. Sua mão abraça os meus dedos com um carinho só seu. E me sobe um impulso de te abraçar, mas eu fico no dedo.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Tatuagem

Seus olhos evitaram os meus
(já é o nosso habitual),
mas o seu corpo me aceitou bem
e respondeu com amor
Em cada pequeno gesto,
um pouco do que ficou

Seu gosto já não é mais o mesmo,
ficou claro que muita coisa mudou
Mas por baixo do toque,
da barba e cabelos;
por trás desse nosso olhar fugitivo
e de todas aquelas palavras não ditas,
ainda tem você
e ainda tem eu

Não encontramos nenhum nós,
parece que ele se perdeu,
evaporou
Já até duvidamos se um dia ele realmente existiu...
Será mesmo?
Mas eu avisto claramente
com aquela nitidez mil
um pouco do que poderia ter sido
e não foi

Nessa fragilidade da vida
onde tudo se esparrama pelo chão
num piscar
e as possibilidades vão escorrendo pelos dedos
ainda que fechemos as mãos com força
elas vão encontrando as brechas;
os átomos se dividem,
se adaptam,
e passam, viajam, deslizam
e o que era não é mais;
e o que podia ser, idém
já não pode mais

Mas sempre fica no ar,
naquela risada conhecida
com som de lar
Fica na barba embarassada
que arranhou outrora a minha pele
- sensível que só ela, mas que adorava ficar marcada de você
Fica nos gestos confusos por insegurança e desejo
quase encabulados, mas intensos como nunca
Fica nos nossos olhares fugitivos
que só confirmam
que, realmente,
muita coisa ficou
Cravada, tatuada,
entre você e eu


sábado, 14 de setembro de 2013

lábios

cê chega por trás de mansinho
afasta o meu cabelo e me beija a nuca
eu acordo, mantendo os olhos fechados
mas denuncio o despertar pelo arrepio imediato

você passeia o seu dedo indicador pela minha nuca,
desce pelas costas,
volta pros cabelos
e termina sentindo a minha boca

depois vem e sente tudo com os lábios
enquanto eu mordo os meus
ainda de olhos fechados,
mas te enxergando como nunca

segunda-feira, 17 de junho de 2013

"Água e sabão na nossa nação"




CARTA ABERTA AOS ARTISTAS BRASILEIROS


Como disse Andre Borges Lopes na sua carta que fora publicada no blog do jornalista Luis Nassif e dirigida aos que ainda sabem sonhar, nós há muito havíamos desaprendido a. Temos visto os maiores absurdos acontecerem diante de nós há décadas e o máximo que fazemos é reclamar dos políticos numa mesa de bar, entre uma cerveja e outra. Nos chateamos e depois vamos pro samba, pra praia, pro estádio torcer por nosso time do peito, pro bloco de carnaval e por aí vai. Nossa geração é especialista em jogar as coisas pra baixo do tapete - ou foi especialista nesse defeito até então.

Finalmente, como num último suspiro, parece que 20 centavos podem realmente fazer a diferença. 20 centavos parecem ter - enfim - despertado a nossa revolta, que há tanto tempo estava sendo cutucada com escândalos de corrupção, violência, má administração dos recursos públicos e falta de condições mínimas para que a grande parcela da população do nosso país viva com dignidade. E, apesar de tantas e repetidas cutucadas, a nossa revolta parecia ainda sonolenta. Mesmo com toda a claridade e barulhos estridentes entrando pela janela, nós cismávamos em continuar dormindo, desperdiçando a energia e sonhos típicos da juventude pelo mal da descrença. 

Contudo, temos visto e sentido na pele que ainda há esperança. Ainda há esperança porque onde há vontade de mudar, há possibilidade de. Depois da nossa geração ter crescido restringindo as nossas (já poucas) reclamações às conversas entre amigos e a manifestações na internet que se limitavam a compartilhar fotos e palavras de efeito, parece que, como num clique, colocamos a cabeça pra funcionar e, finalmente, decidimos pensar, criar, trocar idéias e, já com a bagagem cheia de sonhos, demandas e esperança, ir às ruas para exigir nada mais do que o mínimo que merecemos, nada mais do que o mínimo de tudo o que temos direito. O despertador tocou e nós acordamos com tudo, tomados por uma inquietação e revolta tardias. Mas antes tarde do que nunca, não é mesmo?

A questão é que não tem sido fácil. As manifestações estão sendo violentamente reprimidas. O que ganham os manifestantes que tem caminhado, juntos, pedindo nada além de uma arrumação decente pra esse país já há tanto tempo maltratado, no qual os políticos, em sua grande maioria, se preocupam muito mais em vender a idéia de um país do futuro - vide os rios de dinheiro gastos com obras para a Copa e as Olimpíadas - do que em realmente colocar a mão na massa para combater a miséria, a desigualdade social gritante e a falta de oportunidades que assolam tantos e tantos brasileiros? O que tem ganhado esses manifestantes? Bombas de lacrimogênio arremessadas entre os gritos totalmente pacíficos que clamam pelo direito de nos expressarmos nas ruas "sem violência!"; balas de borracha nos olhos de repórteres, jornalistas e fotógrafos; prisões completamente absurdas com a alegação de que os manifestantes estão cometendo o crime de formação de quadrilha. E aquela tal de liberdade de expressão, o que é isso mesmo? Só um mero detalhe da democracia a qual dissemos por aí ter alcançado, não é? Um mero detalhe que pode ser ignorado sempre que convém. Mas não, dessa vez não. Cansamos. 

A truculência policial está aí para nos mostrar que realmente é hora. Pra nos mostrar quão frágil é a nossa democracia. Pra nos mostrar que a nossa revolta não pode mais ficar adormecida, que precisamos de uma limpeza geral na nossa nação e que não podemos mais nos esconder por trás do nosso individualismo e colocar a culpa "do nosso país não ir pra frente" nos políticos que nós mesmo elegemos a cada eleição. Tudo o que temos, há anos, acompanhado sentados em nossos sofás, certamente dói em todos nós, ainda que em alguns mais diretamente e em outros menos, mas a nossa revolta, enfim, foi acordada por um aumento de 20 centavos - revolta essa que, claramente, não é fundada apenas nisso. Chega a ser engraçado o discurso de quem nos ataca com essa alegação, afinal quem dera o nosso único motivo para revolta fosse o aumento de preço do transporte público, não é? O importante é que agora sabemos que onde quer que estejamos, podemos sim ser mais fortes, basta acreditarmos e sermos uníssonos: um só som, um só coração, uma só nação. Precisamos fazer tudo que podemos fazer e nem sabíamos. 

Para essa luta verde e amarela, eu convido os nossos artistas, tão importantes historicamente em nossas lutas sociais. André Malraux, um escritor francês, disse uma vez que "a cultura, sob todas as formas de arte, de amor e de pensamento, através dos séculos, capacitou o homem a ser menos escravizado" e, é justamente com essa visão, que convidamos vocês, tão influentes sobre nós e sobre todos que possuem sangue brasileiro correndo nas veias, a se manifestarem e a ajudarem o nosso povo a ser menos escravizado! Precisamos, de uma vez por todas, lutar contra essa classe política incapaz de fazer a única coisa que precisa fazer: nos representar. E precisamos de vocês. Caetano Veloso, Chico Buarque, Wagner Moura, Gabriel O Pensador, Gilberto Gil, Ferreira Gullar, João Cabral de Melo Neto, Falcão, Veríssimo, TODOS, precisamos de suas vozes no nosso coro por um novo Brasil!


quarta-feira, 12 de junho de 2013

A cada encontro, uma epifania

Para Diego Asensi


Hoje, em mais uma das nossas inexplicáveis conversas, você me atentou pro meu costume de preferir deixar na estrutura do vazio as coisas mais importantes de serem ditas. Esse toque em nada tinha a ver com a nossa relação, mas me fez pensar em tudo o que eu já pensei tantas vezes em te dizer e decidi não verbalizar por achar que o silêncio já dissesse por mim. Acho que tenho a mania de pensar que o silêncio muitas vezes diz mais do que as palavras e, apesar de eu adorar escrever, eu penso que essas nem sempre conseguem fazer jus a tudo que o ser que fala quer exprimir. Nossos sentimentos e nós mesmos vamos e somos muito além delas. O curioso é que, ainda assim, elas me libertam de uma forma única, quase mágica; é como se eu renascesse depois de cada sensação que eu verbalizo. Nasce uma nova Gabrielle.

Diante dessa consciência do poder libertador das palavras e da sua brilhante - como sempre - percepção sobre mim e sobre as minhas tendências, resolvi dessa vez pôr a estrutura do vazio abaixo e te narrar (quase) tudo (d)o que você é pra mim - ou até onde as minhas palavras puderem te mostrar.


Essa noite tivemos mais uma conversa incrivelmente reveladora e, dessa vez, em poucas horas. Só com você eu tenho tamanha troca. É como se você fosse um desdobramento de mim e eu, de você. Dizemos meias palavras e o outro já entende todos os sentimentos que estão assolando o coração do que fala.

Há mais ou menos um ano atrás, quando você entrou na minha vida, eu não podia imaginar a baita transformação que estava prestes a me acontecer - e que foi, em grande parte, causada por você. A ironia disso tudo é que você é meu primo - de 3o grau, mas é - e nós sempre soubemos quem o outro era e ouvíamos notícias ocasionais do outro pelos nossos parentes. Frequentávamos até mesmo os aniversários do outro quando crianças, mas sempre sem muita interação. Já crescidos, acabamos no mesmo curso, na mesma faculdade, comigo 2 anos abaixo de você e nos esbarrando vez ou outra pelos corredores cinzas daquele prédio. Acabamos com os mesmos sentimentos sobre o curso, cada vez mais decepcionados e perdidos. Mas disso e do que realmente importava, ainda não sabíamos nada a respeito do outro. Pra mim, você era só um primo distante e inteligentíssimo, como dizia toda a família.


Me perdoe pelo clichê, mas se é que existe destino, eu tenho certeza que a nossa aproximação estava destinada e, em pouco tempo, essa sensação tomou conta de nós dois e nos fez criar laços indestrutíveis em poucas semanas, em poucos meses. E minha vida ia acontecendo nos momentos com e sem você, mas era só quando a gente se encontrava que eu realizava tudo o que estava se passando. Você me abriu os olhos pra todos os aspectos da minha vida, você me escutou e me fez querer falar coisas que eu nem sabia que eu sentia. A cada encontro, uma epifania.


E foi ainda na primeira noite que saímos juntos que você plantou uma sementinha na minha cabeça com a pergunta "mas você não vai fazer intercâmbio? Como assim? Sempre pensei que você iria." A partir daí, você se utilizou do seu incrível dom de convencimento pra me mostrar "que eu era interessante demais pra não me dar esse presente". Eu refutava, não achava que eu realmente viria. E aí então você me mostrou que era viável financeiramente sem pedir nada pro meu pai.


Acho que não passou nem uma semana entre o dia que você começou a tentar me convencer e o dia que eu acordei completamente convencida e saí espalhando a notícia por aí. Comecei a me mexer e ver tudo o que eu precisava fazer para ir pra França no semestre seguinte - e aqui estou eu!


Se esse fosse o único ponto sobre o qual você me influenciou, já teria sido muita coisa. Mas não ficou por aí.


Você me libertou das amarras que o meu entorno e eu mesma colocamos em mim. Você me fez duvidar de todas as minhas crenças, me fez repensar as minhas amizades, as minhas relações familiares, os mecanismos de defesa que eu aciono quando me envolvo amorosamente com alguém e a minha profissão. Você me fez pensar por mim mesma depois de tanto tempo engolida por pressões, obrigações, rótulos e sensos comuns burros. E me fez pensar pra discordar de você em tantas daquelas nossas conversas que duravam ás vezes 6, 7 horas no chão da minha sala, já com o dia amanhecendo. A gente terminava cansados e não porque o assunto tinha acabado, mas porque a cabeça já tava doendo, já era demais, "semana que vem a gente continua". Eram como sessões de terapia onde não existiam psicólogo e paciente; os dois faziam ambos os papéis. E eram muito bem feitos, diga-se de passagem. E, não por acaso, foi numa dessas que eu e você percebemos que talvez esse fosse o meu caminho; que o meu papel de terapeuta não deveria ficar restrito aos amigos e que isso poderia me fazer feliz. E não é que ainda acho que estávamos certos? Vim pra França, peguei alguns cursos de psicologia, comprei alguns bons livros e li outros tantos bons textos. E só me encanto mais e mais. E já não cogito não fazer a minha segunda faculdade - dessa vez, uma escolha muito mais madura e que passou por muita reflexão.

Eu fecho os olhos e me vem a imagem de nós dois, como irmãos, no deck da lagoa. Eu vomitando sensações e pensamentos que eu não fazia nem idéia que eram parte de mim. Coisas que eu nunca acessaria se você não tivesse me feito acessar. E, tudo isso, naquele cenário, com aquelas estrelas me abençoando no meio do meu total desconhecimento de como pensar e agir diante de todos aqueles sentimentos novos que de novos não tinham nada. A grande novidade era eu me deparar com eles e abraçá-los; recebê-los como parte de mim e refletir, enfim, sobre isso tudo. 


Todos nós, até o mais seguro dos homens, passamos por momentos de hesitação e de dúvidas de todos os tamanhos e naturezas. E acho que as pessoas normalmente tem a sorte de ter alguns anjos da guarda que as empurram pra fazer o que elas tem que fazer, mas que não conseguiriam enxergar sozinhas a necessidade de. No meu caso, acho que todos os meus "empurradores" estão concentrados em você, simplesmente a pessoa que eu mais admiro e escuto - talvez por ser o único que realmente fala a mesma língua que eu. E é por isso que eu tenho tanto a te agradecer. 


Obrigada por insistir pra eu levar o tecido pra lagoa e fazer o que eu tanto gosto não só nas aulas, mas também em quintas à toa ou domingos chuvosos. Obrigada por sugerir que eu escrevesse e, assim, ter me feito tantas vezes acessar a mim mesma em um nível muito mais profundo. Obrigada por me dizer tantas vezes que você acredita que eu tenho talentos que a minha autocrítica e a minha insegurança nunca permitiriam que se desenvolvessem sem o seu incentivo. Obrigada por martelar que eu falasse certas coisas que deveria há muito tempo falar pra certas pessoas. Obrigada por me fazer enxergar o quanto eu precisava desse tempo fora e ter me apresentado isso exatamente no momento em que eu mais precisei. Obrigada por me fazer abandonar o celular no meu ápice de stress e passar o dia inteiro livre das melindres e chatices alheias, coisa que eu nunca conseguiria ter feito sozinha - é que eu sou virginiana, você sabe. Obrigada por ter me feito criar limites nos meus tantos relacionamentos de mão-única e ter me mostrado que individualismo é muito diferente de egoísmo.


Obrigada por possibilitar esse encontro meu comigo mesma, em todos os níveis, e ter me dado o empurrãozinho - na verdade, empurrãozão - que faltava pra que eu me transformasse definitivamente numa mulher. Sem você nada do que eu sou hoje teria sido possível porque eu tinha esquecido que eu tinha pernas pra andar por mim mesma no meu próprio caminho que nem eu nem você conhecemos, mas que eu vou encontrar. Obrigada por ter me ajudado a alcançar essa certeza, ainda que o céu pela frente tenha uma nuvem ou outra deixando o futuro meio nublado e incerto. Obrigada por me mostrar que não existe um caminho certo, que não existe um comportamento certo, que não existem cardápios fechados na nossa vida; que podemos apagar e escrever diariamente os nossos projetos, nos reinventar e nos redescobrir e que só assim é que a gente se descobre e se conhece de verdade. Obrigada por ter procurado e encontrado o controle da minha vida por aí, perdido, e por tê-lo me dado de presente, comme cadeau, embalado com papel machê e tudo.


Em tempos - e em terras! - que quase ninguém se olha nos olhos e realmente entende um ao outro (e se interessa por), me vi quase que forçada a agradecer àquele com quem eu mais troquei e mais me fez crescer. Obrigada por ter percebido as minhas crenças bobas e as minhas descrenças mais bobas ainda, os meus medos e inseguranças tão óbvios, mas que mais ninguém enxergava e tudo mais que me paralisava e, diante disso, ter gasto um pouco (na verdade, bastante) da sua energia comigo, insistindo.


Te agradeço, enfim, por ter me ensinado tudo o que me ensinou e por ser e ter sido muito mais que um primo: um irmão, um pai, uma mãe e um amigo.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Ciclo



Aqui em Lyon, eu moro numa residência universitária que fica num bairro bem, bem alto, perto da igreja de Fourvière que pode ser vista em qualquer canto da cidade por estar no topo da colina - impressionante como colina dá uma idéia diferente da idéia de morro para nós brasileiros, né?

Bem, moro aqui nessa residência há 5 meses e essas são minhas últimas semanas por aqui. Como partirei em breve, decidi que esse mês (junho) eu não pagaria o transporte da cidade e faria tudo a pé (ou de bike). É claro que o fato do excesso de pães deliciosos e doces melhores ainda estar realmente me engordando contribuiu um pouco pra essa decisão (nem tão) repentina. Enfim, a questão é que essa idéia tem se mostrado realmente ótima. Como já estou de férias, passo o dia inteiro andando sem pressa. Meus amigos aqui ou são brasileiros ou já aceitaram meu jeito brasileiro e nem se importam mais com meu atraso. Como não moro num lugar tão central - e sou enrolada que dói -, demoro um bocado pra chegar em cada programa que eu combino. Mas eu chego. E ainda chego tendo aproveitado de uma boa andada na cidade com o tempo agradabilíssimo que FINALEMENT (só o caps lock pra demostrar o quanto esse clima foi esperado...) chegou por aqui. Além disso, tou dando um jeito nos quilinhos a mais e na flacidez prematura que uma jovem de 22 anos que sempre gostou de praticar exercício não deveria enfrentar.

Bom, esse é o plano de fundo pra introduzí-los nas minhas últimas semanas de passeios intermináveis pela cidade que chegam a 18 km de caminhada por dia (conferi no google maps orgulhosa de ter saído do sedentarismo). Nesse cenário de calmaria e sincera devoção à Lyon foi que eu voltei pra casa hoje. E as voltas são ainda mais calmas porque são subidas. "Devagar e sempre" é o meu lema.

Essa noite, eu fui numa soirée à la française com uns amigos estrangeiros, bebi um vinho ou outro, joguei um papo furado, me deparei com algumas coisas que amo nos franceses e com outras muitas que detesto neles e, por isso e pelo relógio que já marcava lá pelas 4h30, peguei minha bolsa, me despedi de todo mundo e comecei mais uma caminhada. De onde eu tava, seriam uns 45, 50 minutos. Mole, mole.

Passei pelo centro, atravessei um dos rios da cidade (o Saône), fui passeando por Vieux Lyon dando umas espiadas na Fouvière lá em cima da colina e toda iluminada. E eu ia revezando entre uma postura calma e contemplativa e uma postura serelepe que arrisca até mesmo uns passinhos de dança pelas ruas pouco iluminadas e vazias. Nessa madrugada, por exemplo, eu tava com aquela música do Chico na cabeça, "quem te viu, quem te vê", e comecei a subir a ladeira que liga Vieux Lyon a Saint Just (bairro bem próximo de onde eu moro) cantarolando a tal da música.

"Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala / Você era a favorita onde eu era mestre-sala / Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua / Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua / Hoje o samba saiu, láláláiá, procurando você / Quem te viu, quem te vê / Quem não a conhece não pode mais ver pra crer / Quem jamais esquece não pode reconhecer"

E eu ria por dentro pelo prazer imenso de fazer aquele caminho tão gostoso e fui me lembrando que esse caminho nem sempre foi assim pra mim. A primeira vez que subi a tal da ladeirona sozinha foi porque eu não tinha outra opção. Já era tarde, não tinha mais transporte e eu não tinha dinheiro pro taxi. Vi no celular o caminho pra subir e fiz um mapinha nas costas de uma notinha da épicerie. Era inverno, frio da porra, eu com 2 semanas de cidade, toda indefesa e encasada, desacostumada e despreparada praquele frio, praquela solidão, praquilo tudo. E fingindo estar preparadíssima pra tudo, como sempre. Forte por fora e a mais indefesa de todas por dentro. Nevava bastante. Era difícil subir, escorregava. Eu achava a ladeira íngreme demais, uma verdadeira missão e simplesmente não via nada de agradável em subir a pé. Tinha medo de cada curva. Imaginava possíveis atos de violência a cada instante, super alerta - sou brasileira, né? Assassinos e estupradores saindo de trás dos carros, surgindo nas ruas escuras e por aí vai. "Tem alguma coisa errada", eu pensava. "Como um lugar tão deserto pode ser seguro?", me perguntava encucada. Achava muito suspeita a calmaria da cidade e andava com os olhos arregalados, atenta a tudo.

Repassando tais lembranças, percebi que até chegar aqui tracei um bonito caminho com essa cidade tão viva e linda. Um caminho que vai ficar eternizado pra mim nessa ladeira já tão querida.

É que, aos poucos, o inverno foi dando uma sossegada e a temperatura já não era negativa e ficava ali pelos 0 ou 5°. E isso já melhora muito, é sério. Passei a ter menos medo das subidas e a pisar com a sola do pé nessa cidade incrível. Nada de ponta do pé, viva o contato! Nessa época então, lá pra março, passei a conseguir ver a beleza de cada prédiozinho e cantinho desse meu caminho de volta pra casa. As janelas que mostravam salas em meia-luz já não me deixavam mais apreensiva, agora eu queria é saber sobre cada pessoa que morava por aquele meu caminho que já passava a ser tão habitual... A desconfiança foi indo embora e dando lugar às queridas curiosidade e criatividade. 

No fim dessa mesma ladeirona, tem uma escada. Depois dessa escada, já é Saint Just e, a partir daí, faltam em torno de 10 min até a minha residência. A tal da escada, depois de tantas subidas e descidas, já virou um referencial pra mim, é o meu lugar por aqui. Quantas Gabrielles diferentes já desceram e subiram aquelas escadas? Quanta transformação ela acompanhou? De quanta vida ela foi testemunha? Essas percepções ficaram tão claras de repente que quase se materializam diante dos meus olhos.

Portanto, desde o primeiro mês eu viajava vislumbrando todas essas possíveis mudanças que ocorreriam - e ocorreram, um pouquinho mais pra direita ou pra esquerda do que o que eu imaginava, mas ocorreram - e adotei a escada como meu símbolo. Aí eu disse pra mim mesma que quando eu estiver indo embora de Lyon eu vou voltar na tal da escada e ficar uma boa meia hora sentada tentando repassar essa enxurrada de informações do último ano. E ficarei então só vendo o tempo passar e as coisas se transformarem. Com ou sem a minha interferência.

O ponto é que assim como o meu olhar para com esse caminhozinho foi se alterando conforme o tempo passava, tantos outros olhares estão por aí em constante mudança nada menos que o tempo todo. E hoje esse meu caminho já me enche de amor e me sinto como se eu subisse derretendo, passo a passo, e deixando meu líquido pelo chão; parte de mim; pedaço; carne. É que eu sinto que não sou só eu que mudo a cada vez que passo pelo caminho, ele muda comigo. A cada vez. Assim como mudou hoje quando aquele garotinho de 4 anos dos cabelos loiro-ovo passou por lá pela primeira vez com o avô, descendo bem devagar, observando tudo, de mãos dadas com o seu velho, sem pressa. O menininho é sensível o suficiente pra saber que avô não se apressa. Ele tem isso muito claro na mente "pai e mãe, tudo bem, mas avós são velhinhos e a gente não apressa".

Se eu me concentro durante a subida, eu quase sinto esse passeio do avô e do netinho. O amor ficou no caminho e eu quase posso absorvê-lo; ele faz cócegas nos meus poros.

Engraçado como as coisas, lugares e gente viram lar pra gente de pouquinho em pouquinho. No começo, nada aqui tinha gosto de lar, de meu, de casa. Era simplesmente um alojamento; uma faculdade com matérias interessantes, mas vazia; pessoas bonitas e inteligentes, mas com quem eu não me conectava, como se cada um falasse uma língua diferente e incompreensível para os demais. E eu perdida nesse meio. Aos poucos a vizinhança fica com cara, cheiro e gosto de lar. O quarto já vira "meu cantinho". Aos poucos, você vai adquirindo lugares preferidos na cidade. As pessoas passam a te conhecer e você já tem uma coleção enorme de rostos e sorrisos familiares. E uma hora você já é gostado, já é querido, e as coisas começam a fluir melhor, com mais leveza e naturalidade. O quebra-cabeça vai se encaixando sozinho, parece mágica.

E até parece que só a cidade que te mudou, né. Até parece que os lugares que você foi te mudaram, que as pessoas que você esbarrou pelo caminho te mudaram e acrescentaram um bocado daqui e dali, que o que você viveu ficou pra você e pronto. Mas não é bem assim. A gente não transforma só as pessoas com quem a gente convive, a gente transforma também os lugares, o tempo, os olhares. Saímos deixando nossas marcas por aí pelo mundo, o tempo todo. Em cada um dos prédios dessa cidade, por exemplo, muita gente atuou, tem muita história. Quem construiu, quem morou, quem olhou, quem fotografou, quem visitou, quem passeou, quem reformou, quem, quem, quem. São milhares de quems que deixaram um pedacinho de si naquele prédio. Aquele prédio que foi um hoje e amanhã já será outro. É tudo vida, vida, vida; e a mudança não pára. E assim acontece também com as praças da cidade, com os palcos de shows, com a beira do rio, com os parques e com as escadas (especialmente com aquela). Isso porque as cidades existem pras pessoas, não existes sós; elas carregam com elas um pedaço de cada um, numa mudança constante.

E, nesse contexto, temos eu, uma pequenina peça oriunda do nosso enorme Brasil, que tem como língua materna o português carioca e que sente nas veias as raízes gritando, em coro. E essa pecinha tá aqui, aberta, transformando e sendo transformada a cada caminhozinho por Lyon; caminhozinho que eu percorro com a cadência única dos meus passos, com o gingado que arrisca um samba no meio da ladeira às 5h da manhã, com o sorriso por dentro que se reflete nos olhos e com o respirar fundo que dá tempo pro ar encher meus pulmões não só de ar, mas também de vida. 

quinta-feira, 30 de maio de 2013

rien d'autre



você soprou suas palavras num envelope
vermelho

lacrou bem lacrado pra ninguém roubá-las no caminho
ou até pras serelepes não fugirem

chamou o pombo correio que,
responsável que só ele,
chegou na hora certa, bem pontual

disse pra ele levar o envelope com carinho,
"esse é especial"

e,
como mágica,
suas palavras chegaram até mim
essas letrinhas cuidadosamente escolhidas e unidas
atravessaram esse oceano que nos separa,
o fuso horário e até a falta de toque

é que elas chegaram
ainda frescas, quentes
e se instalaram em mim num triz
e eu as aceitei de peito aberto,
- me invadam, queridas,
podem vir

me arrepiei toda,
sorri inteira por dentro
(e por fora também, sorriso com a boca fechada)
me joguei na cama num suspiro profundo
abraçando o envelope vermelho
e com os olhinhos bem fechados

seu cheiro saiu dele e inundou meu quarto
do meu travesseiro então, acho que ele nunca mais sai
seu toque atravessou as palavras
e, imaginando, te senti e arrepiei
to-da
até os dedinhos do pé

e sua imagem nunca esteve tão visível, chéri
de forma que eu podia até mesmo
abandonar todas as minhas necessidades fisiológicas 
agora
comer pra quê?
dormir pra quê? 

afinal,
de que mais eu preciso
pra viver
além de envelopes
vermelhos?
rien d'autre.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

confete




menina iluminada
que acorda num só pulo, sem pestanejar
e já vai direto pra cozinha

mas, em vez de comer,
abre aquelas janelas eno-o-ormes,
olha o céu, fecha os olhos, respira bem fundo,
pega seu saquinho de confetes
e começa a jogá-los na rua com aquele riso frouxo e gostoso

diz que quer enfeitar a cidade
e tirar um sorriso de meia dúzia de franceses ranzinzos

(e não é que ela consegue?)

preguiça

mal vi você chegar
e nem me dei conta
de quando você levou minha coberta
minhas roupas, minha proteção
e me deixou à mostra, nua

de repente, eu era feliz de novo
mesmo envolta por essa vulnerabilidade mil

e agora eu tou rendida demais
já e ainda

então vem pra cá
e deixa todo o resto pra depois
viva o pecado capital da preguiça..
vem desperdiçar suas horas comigo
fazendo o nada mais gostoso que existe
se espalha todo pelo chão
se estica, se entrelaça
et m'embrasses!





te mostrar

fecha os olhos
e me deixa contar
suas pintinhas espalhadas
pelo corpo

me deixa contar
nessa meia luz
um segredo só meu
e não se assuste,
isso conta muito pra mim,
mas me ame mais logo em seguida

me deixa contar também
quantas vezes eu contei os meses,
as semanas, os dias
pra te reencontrar

e agora a gente tá aqui
e eu vou te contar,
nem caiu a ficha

então pra que contar vantagem?
prefiramos contar um com o outro
é tão simples ser feliz,
me deixa te mostrar

sábado, 4 de maio de 2013

chega pra lá um bocado
me deixa sentar do seu lado
e não me encha mais de mentiras

tamos os dois desperdiçando
doçura e palavras,
mordidas e assopros,
alfinetes e pomadas

sabe aquela nossa foto que você revelou?
perdi a primeira e você fez questão
numa das nossas semanas de lua-de-mel
de me dar uma segunda
cê lembra?

calma, essa não perdi
ela simplesmente evaporou
junta de todo o resto
de mim, pra você
e de você pra mim

já não tem mais nada de nós dois
nesse quarto ou na cozinha
e nem na padaria
ou no banheiro daquele jazz

na beira do rio então, imagina
nem nos passeios de bike
ou nos cafunés d'antes de dormir
tudo evaporou num triz
como se nunca me tivesse acontecido

et voilà, cê conseguiu
agora passar bem,
meu bem
porque santa cê sabe muito bem
que eu não sou

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Vinte e dois

Saí do mercado toda carregada e me deparei, ainda pelo vidro, com a chuva lá fora. Observei, ao vivo e a cores, o céu se fechando mais e mais e os trovões aparecendo. "Inferno, vai ser uma volta pra casa foda, mas que seja de uma vez pra passar logo", pensei. Dizia pra mim mesma "vas-y, vas-y" enquanto corria com as sacolas recicláveis pra fila do tram. Sobrevivi à metade. Saí do tram e peguei o ônibus pra subir pra casa. Mais uma corridinha et voilà, estou na frente do meu prédio. Me molho mais um bocado procurando a chave, mas entro sã e salva. Subo as escadas ainda carregada - para os que me conhecem, não preciso nem dizer que moro no último andar de um prédio sem escada, né... como sempre Murphy me perseguindo... - e, claro, o grand finale. Tropeço, desço de bunda os primeiros 5 ou 6 degraus que eu tinha subido dessa leva de degraus e comigo, evidentemente, tropeçam todas as mercadorias que eu havia comprado no mercado. Algumas caem os 5 ou 6 degraus como eu e outras continuam escada abaixo. Me levanto já puta da vida com esse tal de Murphy e começo a catar os itens, contando um por um. Um, dois, três, quatro... Dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois. Como a minha idade.

Peguei a última mercadoria no primeiríssimo degrau lá debaixo - diga-se de passagem, uma lata de leite condensado - e sentei nesse mesmo degrau, já sem pressa e toda molhada. Vinte e dois, como a minha idade. Já é alguma coisa, não é? Acho que talvez seja por isso que eu tenha ficado cada vez mais exigente com as pessoas que me cercam. Parei pra pensar nos meus anos e descobri que talvez eu não tenha anos o suficiente pra dar e vender por aí. É claro, sou muito nova ainda, mas já tenho um passado raso demais, não aceito mais futuro nesses moldes.

Me sinto então como quando estou comendo um dos meus doces preferidos. No começo, como igual a uma desesperada e, conforme a tigela ou prato vai se esvaziando, meu ritmo vai diminuindo, deixo de ser displicente com meu doce, agora curto pedacinho por pedacinho e saboreio por longos segundos na boca.

É que já não tenho tempo pra lidar com almas pequenas, com gente que é mais ego do que humanidade. Com brigas por postos, sucesso e poder. Já não tenho tempo. Não estou mais disponível para conversas intermináveis sobre cousa alguma - ou, ao menos, sobre cousa alguma que realmente importe. Não estou mais aqui para discutir ou assistir que discutam sobre a vida alheia, sobre quem fulaninho ou ciclaninho namorou ou deixou de namorar e como era o tal do relacionamento que existiu ou que, por um triz, não vingou. Apesar da mesma idade cronológica, mais e mais me vejo cercada por pessoas imaturas. Adultos imaturos.

Da mesma forma, já não tenho tempo pra excesso de pudor ou de suscetibilidade. Chega de melindres, cresçamos todos ou deixem-me os que nada têm a me acrescentar. Meu tempo tornou-se por demais escasso para "essa gente careta e covarde", como já diria Cazuza. Esse já entendia bem há muito tempo do que eu falo agora e, caridoso como só ele, pediu inclusive piedade pra toda essa gente com um gostoso de um blues.

Os tantos que me cercam - salvo as poucas e abençoadas exceções - não discutem conteúdos, ficam presos aos rótulos e passam a vida toda remoendo as mesmas questões e buscando o que não se pode ter. Gente que não muda conforme a lua, conforme as cores do dia, conforme à trilha sonora imaginária da cabeça. Ou melhor, gente que nem tem trilha sonora imaginária. Gente que não sente arte, que não tem arte nas veias. Mais uma vez roubando as palavras de Cazuza, gente que "não sabe amar, fica esperando alguém que caiba no seu sonho".

Minh'alma tem pressa e eu também. Eu quero conviver com gente humana, muito humana, creias de escrúpulos. Gente que ame seus escrúpulos. Falo de escrúpulos no bom sentido, em relação aos absurdos da vida, à falta de humanidade. E, ao mesmo tempo, gente sem correias ou que as deseje afrouxar cada vez mais. Abertas, artistas - seja de profissão ou só de alma, pouco importa o ofício.

Eu gosto é de gente que ri dos próprios tombos e que detesta ostentação. Gente terrivelmente mortal e consciente disso e que, por isso mesmo, escolheu viver. Afinal, não é pra isso que estamos aqui? Estou velha pra gente de mentira, eu quero é gente de verdade.  É que meus pratos e vasilhas já estão no final, preciso degustar os meus doces com muita calma e sabedoria.

Pelo menos por hoje eu ainda tenho a lata de leite condensado que está na minha mão, né? A mercadoria número 22, como eu, e que deu lugar a essa epifania... hora de pegar as coisas e subir as escadas de uma vez porque as minhas roupas ainda estão molhadas e, como diria a minha avó, "isso é gripe na certa!"

sábado, 27 de abril de 2013

quebra-cabeça

caiu lá de cima do armário
da última estante
aquele quebra-cabeça antigo
com as suas muitas peças
umas cem, talvez duzentas

e as peças caíram todas no chão 
e, como num passe de mágica, 
elas todas se atraíram 
como se ímãs as impulsionassem
a se juntar
assim,
subitamente

se olharam,
acariciaram-se
e se encaixaram
engrenando-se
e ajustando-se
ao som do maracatu que tocava ao fundo

e das peças juntas veio um clarão
com gosto bem forte
de epifania

e elas, tão incompreendidas quando sós,
criaram forma e sentido entrelaçadas

e cada uma já tem um pouco da outra em si
nesse código genético tão louco 

eu sou um pouco de cada um de vocês, amigos
e vocês tem um quê bem grande de mim
e cada um de nós, 
as luzes, ruas e histórias dessa cidade
dessa ville lumière amada

fincamos amor de vieux lyon ao tête d'or
da guillotière à part-dieu
da perrache ao bron
fizemos lyon transbordar com nosso jeitinho brasileiro

e ela, igualmente
se fincou na gente
e em toda a gente 
que por aqui passa
de peito aberto,
com fala doce
e cheio de pétalas de rosa no olhar

e ainda que chutem essa nossa junção,
nosso quebra-cabeça repentino,
já tem tanto de vocês em mim
que não tem chute que afaste 
essa fluidez apaixonante
e colorida que só ela


segunda-feira, 8 de abril de 2013

Falta de mim

Tem dias que a gente levanta com o pé esquerdo.

Hoje foi pior. Antes mesmo de eu sair da cama, já estava com essa sensação. O telefone tocou e era uma das várias pessoas que eu não estava afim de encontrar ou de conversar hoje.

Eu sei que essa postura parece mal humorada demais, antissocial demais, mas hoje eu não me importo. No fundo, tem tantos dias que eu não estou afim de ver ninguém e mesmo assim cedo, faço a minha parte, convivendo com uma série de pessoas as quais eu desprezo, persistindo num curso que eu já descobri não ser a minha praia, requebrando para lidar com as decepções e traumas familiares, dando um jeito de me adaptar aos outros sempre, indo nos almoços, escrevendo a tal da carta que eles querem ler, falando o que eles querem ouvir. "A faculdade vai ótima, obrigada". "É, agora falta pouco". "Não, não estou namorando, mas a vida é assim mesmo, Vó, daqui a pouco aparece alguém que valha a pena".

Façam o favor: Por hoje, não me encham. Acho que mereço.

Atendi o telefone contrariada, me armando de meias palavras pra que aquilo durasse o mínimo possível.

Aí me libertei - nem que seja só por 24h.

Desliguei o celular e o deixei em cima da cama. Coloquei meu biquíni  um vestidinho, peguei um livro e segui para a praia. Ufa!

Peguei uma cadeira - o que eu nunca faço, mas hoje eu tava afim, ué. Passei mais filtro solar e abri o tal do livro. Li, li, li, como não fazia há tempos.

Quando eu vi, já tinha lido umas 150 páginas e já eram quase 18h, mas eu ainda precisava de tempo, do meu tempo. Como diria Lenine, meu corpo estava não só precisando de calma, mas também de alma, contato com minha própria alma.

Isso me fez lembrar que outro dia um grande amigo meu estava me contando o quanto ficou chocado com uma história de um amigo dele alemão que está passando uns tempos aqui pelo Rio. O tal do amigo alemão veio passar 3 meses por aqui, mas não aguenta ficar sozinho um minuto. Sai fazendo uma série de amigos pela internet e está sobrevivendo por aqui levando uma vida promíscua pra afogar a carência - não é nem suprir, né? Promiscuidade não supre carência.

O alemão então comprou passagem, reservou hotel e sarapatel para ir pro Recife. Planejava ficar uma semana. Ligou para o meu amigo para se informar sobre o ônibus que ele poderia pegar pra ir ao aeroporto. E foi. No entanto, em cima da hora, amarelou, não embarcou. Meu amigo, dias depois, perguntou o que fez ele não embarcar, visto que já tinha reservado tudo e já estava no aeroporto. Peguntou se, por acaso, ele achava que o Nordeste pudesse ser perigoso demais ou algo do gênero. Mas não era isso. O alemão estava com medo de ficar sozinho. "1 semana, achei que eu fosse ficar sozinho demais".

Caramba, que tipo de criação essas pessoas tiveram? O cara me vem pro Brasil e tem medo de passar alguns dias sozinho?

Saí da praia, jantei num dos meus restaurantes preferidos, dei uma passada no cinema Estação do lado da minha casa pra ver se tinha alguma coisa que prestasse - e tinha! Fui ao cinema, tomei coca-cola e comi pipoca cheia de sal - sim, eu não estou nem aí pras minhas artérias entupidas hoje, obrigada - e, apesar disso, voltei pra casa uns 5 kg mais leve. Cheguei e ainda peguei meu tapetinho de yoga pra fazer um super alongamento e dormir melhor.

Tomei um banho delicioso e decidi só ver o celular e a internet amanhã, quero o dia inteiro de folga, ainda não tive tempo suficiente comigo mesma... Ça n'a pas suffit.

Ai, que saudades que eu tava sentindo de mim!







trop tard



as palavras
esse bocado de letras juntinhas formando um significado,
de que me servem as tuas, tão rasas e vazias?
tão frias e tardias,
já se foi o tempo que elas podiam me tocar


domingo, 7 de abril de 2013

Saudade



Admito, foi difícil vir. Mais do que eu deixei transparecer. Bem mais. Coloquei na mala um pouquinho de cada um que amo. Sentei em cima porque tava lotada demais e nem sei como eu consegui fechá-la. Mas ça ne suffit pas, tem dias que dá aquela saudade... Fica até difícil respirar.

Deixei meu quarto ainda desarrumado. Meus 2 gatos, dengosos, pedindo carinho, passeando entre minhas pernas e soltando "miaus" ininterruptos.

Deixei a mãe despreparada, com o coração na mão e preocupada.

Deixei um sonho pela metade; a profissão, joguei aos leões. Vim em busca de um rumo, do jeito que tava não dava mais.

Deixei aquele homão que me apareceu meses antes. Dei um beijo apaixonado, catei minhas coisas todas e deixei ele de cueca, enrolado nos lençóis, dizendo com os lábios pra eu vir e me apoiando e com o olhar, pra eu ficar.

E fico me perguntando até que ponto aquilo que dizem de que é mais difícil pra quem fica é verdade.

É que eu achei que ia encontrar por aqui um bocado de vocês no brilho dos olhos de quem eu viesse a conhecer. Claro que eu não esperava encontrar com pessoas idênticas a vocês, mas sim aquele pouquinho, coisa boba, que me fez amar tanto vocês. Talvez um pouco do primo no sorriso de um colega ou o mesmo espirro da minha mãe num desconhecido que sentou do meu lado no café. Ou então a rapidez na fala daquela minha amiga querida saindo da boca de um francês engraçado que cruzaria o meu caminho. Ou até mesmo o jeito de vestir do charmant, o cafuné do melhor amigo ou a comida da vovó. O perfume do pai também servia. Ou o riso frouxo do irmão mais novo. Um suspiro que fosse de vocês já ia confortar o meu coração. Saber que tem gente tão apaixonante assim ia ajudar muito, é só isso que eu queria.

Mas não tem vocês em nada. Apenas fotos vazias no quadro aqui da frente. O quarto tá mais vazio do que nunca e nem me preocupei em acender as luzes. What's the point?

Acreditam que joguei umas roupas no chão pra dar a impressão de que ele tá mais cheio? Ok, eu admito, não foi só por isso, eu devo ser a virginiana mais caótica que existe. Mas aqui eu adquiri o hábito de arrumar tudo logo que eu entro no quarto e agora perdi a vontade.

Ei, isso tudo é pra dizer que hoje deu saudade.



resquícios

acordei no meio da noite
numa festa louca, o quarto tava lotado

os bêbados emaconhados trocavam beijos,
distribuíam riso solto,
arriscavam passos de dança entre a bagunça
(afastaram aos chutes os casacos e penduricalhos pra abrir a pista)

e eu fingi que tava dormindo,
não dei um pio sequer. 

é que tou cansada de interagir com esse bando
querendo curar minha falta de você

e aí eu fiquei horas 
ignorando aquela muvuca toda 
e degustando em pensamento
o bocado que ainda tenho de você

me viam flashs da sua barba mal feita arranhando meu corpo,
de você abrindo a porta, me puxando pela cintura e me dando aquele abraço forte
como se tivessem meses que a gente não se via 
mesmo que tivéssemos nos visto há 2 dias...

flashs da sua meia dúzia de cabelos brancos que tanto te preocupam
e do seu sorriso de canto de boca quando vai começar 
uma daquelas conversas alucinógenas que tanto me intrigam 

flashs de você, de você, de você...

e aí a doida que tava achando que conseguia sambar naquele estado
caiu em cima de mim
e te levou embora
mais uma vez.


domingo, 10 de fevereiro de 2013

cravo, canela et finesse



não é gabriela,
mas é quase
e também sou cravo e canela
mas com uma pitada
de finesse
au même temps,
un peu à la française

saio enfeitando o meu mundo
com vários tons de vermelho
ora pintando os muros
e sambando nas esquinas
ora tomando um vin rouge
e ouvindo um jazzinho
bem apropriado

o que eu não gosto é de cinza
- nenhum dos cinquenta tons -
pra mim, existe o vermelho, o preto e o branco
et ça suffit

only lyon





a neve lá fora
desobediente que só ela 
não deu uma trégua essa semana
uminha sequer
tá que nem criança levada
fofinha, mas não vale nada
é rebelde que dói

mesmo assim, 
vesti o manteau e sai porta afora
pra me perder por tuas ruazelas 
e namorar cada janela antiga
cada escadinha escondida
e as cores dos prédinhos de vieux lyon

queria é fazer confusão
com as tuas pracinhas
com as tuas igrejas
e até com os teus franceses

mas. ao invés disso, lyon
fizestes o oposto avec moi
teu guignol me deu a mão
e entre teus traboules
teus clubes de jazz e teus bouchons
enfeitiçada por 
teu aroma, sabor, cor e tom
acabei me encontrando

- ei, toi, me belisca?
ora, nem sei se cidade belisca
mas se bem.. qu'inda bem
quem disse que eu quero acordar?








terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

meu do teu

 
 
Cê invadiu meu sono
já quase de manhãzinha
 
E foi tão leve
e colorido
nele,
eu transpirava laranja
e você, azul
a sala, tava agradabilíssima
mas da cor de sempre

Cê colocou aquele cd que eu
tanto gosto
chegou perto, me deu um beijo
de esquimó
e foi pra cozinha pegar o número
daquela pizzaria que amamos
enquanto eu fiquei escolhendo o filme
de hoje à noite
na télé

Música boa,
aquele som de risada
e nossa cumplicidade

É que tantas milhas de distância
tem transmutado nós dois
de uma química pra outra
e nem tinha como ser diferente
e eu tou numa boa por aqui
e tou certa que você, idém
 
Mas cê inda não sai da minha cabeça
e inda tem prazer rondando em tudo
e não tem um sonho que eu tenha contigo
dormindo ou acordada
que não me deixe molhada
e desperte minhas saudades
que eu pensava já terem adormecido,
quietinhas
 
E já cheguei mesmo
a achar teu cheiro por aqui
bem no travesseiro
e um fio de cabelo até
cê credita?
 
Deve ter vindo em mim:
assim,
um monte de pedacinho
teu
e agora meus
já que te trazer inteiro
malheureusement
não deu

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

nuca

acordei por agora
a um oceano de distância
mas repleta de você
em cada pedacinho meu
e minha nuca ainda guarda alguns resquícios
avermelhados
de seus beijos e do atrito com a sua barba mal feita
- é, eu fico vermelha à toa
quem mandou ser branquinha assim?

nossa bossa



essa bossa nova ao fundo
só me lembra você me olhando
enquanto eu analisava a sua coleção de cds
e separava um ou outro
já animada pra copiar
ali na sala

você, com aquela sua camisa vermelha
e listrada
sorrindo pra mim, pleno
acho que nunca te vi tão bonito

ah! e essa camisa foi a mesma que
eu usei daquela última vez
pra abrir a porta pra você
que vinha da padaria
- tinha ido comprar pão fresco pra gente -

e
além do pão
me trouxe um serenata de amor
de sobremesa
do qual eu nem quis saber
já que me deliciar com você
sempre foi muito melhor
sobre a mesa ou não

então deixamos os pães pela metade ainda
você se lembra?
e ali na cozinha mesmo a gente se amou

lembro que eu tava passando requeijão no pão
e você sorriu pra mim e se levantou
pra pegar o suco de laranja
mas no caminho se achegou e beijou minha nuca

e nada mais de pão, de requeijão ou de suco
nada mais de camisa vermelha listrada

só eu e você
e o chão frio da cozinha
que em poucos segundos
já fervia com a gente