sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

gosto de fruta mordida


mal faz dois dias que não te vejo
e o vazio já se instaurou dentro de casa

como disse cazuza,
aquele amor com gosto de fruta mordida

a cama tá fria, a despeito de todos os edredons que eu coloque em cima dela

o problema é dentro

é que o seu olhar afável e os seus pés entrelaçados mantêm meu coração quente

l'amour est ridicule, je sais
mais c'est aussi la meilleure chose du monde

sábado, 6 de dezembro de 2014

À bientôt, Lyon



E tudo terminou comigo nesse avião me dando conta que essa experiência me transformou para sempre. A princípio, hoje foi um dia comum, comigo jogando o jogo da vida no modo “hard”. Ontem eu havia me despedido de Lyon e de alguns bons amigos; passeei pela cidade à noite voltando pra casa pela última vez. Passei pelos pontos principais, os quais eu tantas vezes freqüentei. E as lembranças me trouxeram paz. E saudades, essa palavrinha que não pode ser exatamente traduzida pro francês. Só a gente que entende. As saudades futuras já estavam desenfreadamente se instalando no meu peito. Resolvi respirar fundo, dar a mão para o João, um dos queridos amigos que eu tive o prazer de fazer pelo caminho, e continuar adiante. Chegando em casa, o Theo, um francês que surgiu como meu aluno de português, mas logo virou um parceiro, foi me visitar para se despedir. Conversamos um pouco sobre o que eu estava sentindo; ou melhor, sobre o que eu não estava nem conseguindo sentir, eu mal acreditava que ia voltar. Ele me contou um pouco da volta dele do Togo, onde ele morou por um ano. Falou sobre como a readaptação foi difícil. Olhou nos meus olhos. Riu. O rosto dele estava cansado, pois ele não dormia há dias por causa do trabalho. Eu também não dormia há dias, mas porque não podia acreditar que estava realmente acabando... Meu ano na França acabou.

Ele acabou dormindo lá em casa: apagou rapidinho. Eu, nem tanto. Devo ter dormido 2 ou 3h. Acordei com o despertador dele e impaciente para acabar de arrumar as coisas e me ver livre disso. Mas antes uma coisa: Desci e fui pegar uma encomenda que eu tinha feito pela internet com alguns presentes (pro meu irmão, pra minha tia e pra uma grande amiga). Eram uns quadrinhos de uma pintora. Eu havia pedido na segunda-feira passada, dia 16, e antes de pagar eu liguei pro site pra perguntar em quantos dias encomenda ia chegar, pois sei que Murphy tem uma atração inegável por mim e quis evitar problemas. Me disseram 2 ou 3 dias, o que significa que chegaria 4ª ou 5ª feira. Mas hoje é segunda-feira de novo e a encomenda ainda não tinha chegado. Não pude acreditar. Eu iria voltar pro Brasil sem presentes pro Natal e ainda teria que arrumar alguém pra ir pegar a encomenda e levar pro Brasil em seguida.

Resolvi respirar, eu não podia me estressar. Fui no mercado e comprei um espumante pra abrir amanhã com a família. Depois passei no “Paul”, a boulangerie que fica perto lá de casa, e comprei meus últimos croissant e pain au chocolat desse meu ano à la française. Levei um pain au chocolat pro meu coloc, Aymeric, porque sei que ele gosta muito. Ele sempre tentava – e conseguia, já que eu não sei dizer não – roubar uns de mim.

Então, continuei a arrumar o meu quarto. Consegui me livrar das tralhas da mesa, tirei as fotos da parede e a poeira do chão. Joguei fora também aquele espelho que eu e alguns amigos achamos na rua uns meses antes e resolvemos levar pra casa, mas que quebrou no caminho porque 2 desses amigos tiveram a brilhante idéia de deixar o espelho na cesta da velov enquanto os 2 dividiam a bike. Lembrei desse grupo querido, que está no Rio e que devo encontrar em breve. Que coisa doida.

Depois disso, o Aymeric me disse que achava que não poderia me acompanhar à Gare Part-Dieu, a estação de trem onde eu pegaria o TGV pro Charles de Gaulle, já que o meu avião sairia de Paris. O motivo é que ele estava esperando uma ligação da ex-namorada que foi morar na Austrália. Nem acreditei. Eu ia embora depois de morar 6 meses com ele e tinha 2 malas de mais de 30kg cada e uma mochila com mais uns 10. Respirei mais uma vez e disse que não tinha problema.
Voltei pro quarto e escrevi uma carta pra ele. Nesse momento, relevei todos os aspectos negativos da coloc e fui muito carinhosa, como me é de costume. Escrevi também pro meu outro coloc, Guillaume, dessa vez um pouco menos intensa.

Arrumei as minhas coisas e fui me despedir. Deixei com ele ainda um resto de haxixe que eu encontrei no meu quarto e uma lixeira do Che Guevara, que eu havia herdado de outra amiga uns meses antes. Ele olhou a quantidade de malas e perguntou se eu tinha certeza que não precisava de ajuda. Eu disse que não. Meu orgulho, maldito, não me deixou aceitar. Já estava magoada por ele ter deixado de me acompanhar por causa de uma ligação que poderia muito bem ter sido feita depois. O problema da mala era o de menos.

Ele me ajudou a colocar as malas no elevador, eu entreguei a carta e dei um abraço apertado. Chorei um bocado, mas achei que seria pior. Entreguei a chave do nosso apt e a porta do elevador se fechou escondendo aquele sorriso simpático e acolhedor desse francês tão querido com quem eu pude dividir alguns muitos bons momentos.

Em seguida, o drama começou. Tirar as malas do elevador já foi bem difícil, mas chegar até o ponto do bonde (tram) me parecia impossível. Num momento que eu já estava sem forças, escutei aquela pergunta mágica tão difícil de se escutar em terras francesas: “Est-ce que je peux vous aider?”. Agradeci muito e o cara e o seu pai se ocuparam das minhas malas até o ponto do tram, me deixando só com a mochila. Pegamos o tram juntos. Eles iriam até a Guillotière e eu continuaria até a Part-Dieu torcendo pra ter sorte por lá também. Nesse meio tempo, me falaram que eram da Colômbia e eu disse que estava voltando hoje para o Brasil. Eles já moram em Lyon há 3 anos. Eu disse que tive um ano incrível por ali e mencionei também que a minha avó não sabe que eu to voltando pro natal. Eles se animaram com a minha animação. Sorriram. Me desejaram uma boa viagem e saíram pela porta do tram. Eu fiquei olhando para as minhas malas, pensativa, pensando na influência das pessoas sobre a cidade e vice-e-versa.

Logo, cheguei à estação. Estava bem cheia e eu mal conseguia passar com as malas, tinha que parar o tempo todo e já estava um pouco estressada. Conferi a plataforma do trem e já fui me dirigindo pra ela. Subi as escadas rolantes segurando as malas e olhando a part-dieu, por onde eu passei por incontáveis vezes. Me veio à lembrança quando eu me despedi do Tomás por essas plataformas, um dos grandes personagens desse ano pra mim, um dentre os tantos amigos brasileiros que descobri por essas terras. Foi no início de agosto. Percebo como a minha noção de tempo está cada vez se afastando mais do tempo cronológico. Eu não só escrevo em tempo psicológico, como sinto e vivo nesse tempo. E, ao mesmo tempo que parece que agosto voou e que na verdade isso tudo aconteceu há um mês atrás, consigo ver tudo que eu construí de agosto até agora, superando as minhas próprias expectativas, uma vez que, acompanhando a partida de vários amigos meus, acreditei também que eu já não construiria mais muita coisa.

O trem chegou e com muita dificuldade eu consegui subir as 4 escadinhas com as 2 malas, mas eu não achava espaço pra elas. Acabei enfiando a mochila num cantinho e deixando as malas no meio das passagens, uma na passagem à direita de onde eu tava sentada e a outra, à esquerda. Sentei com calma, finalmente. Na minha frente, estava um jovem da île de la réunion que mora no Canadá. Aproveitei pra gastar mais um pouquinho do meu francês antes de partir. Ele falou que adorava música brasileira e ele realmente conhecia bastante coisa. Recomendei outros cantores que ele não conhecia e escutamos algumas do meu ipod. Conversamos e rimos um pouco. Ele também estava indo para o Charles de Gaulle. Pedi ajuda na saída, pois eu não tinha muito tempo pra tirar as malas e cada uma tava num canto. Ele se prontificou em me ajudar, mas eu não conseguia passar para o lado oposto que ele foi porque o corredor tava lotado. Saí então pelo mesmo lado, tiramos uma das malas e entrei no trem novamente pela outra porta para recuperar a mochila e a outra mala imensa. O trem tava quase saindo, já que continuaria até Lille, e as pessoas que estavam entrando estavam super impacientes comigo, mas falando alto e os empurrando um bocado eu consegui sair do trem milisegundos antes das portas se fecharem e o meu recém-amigo estava me esperando com a minha outra mala do lado de fora. Achamos um carrinho pras malas, subimos o elevador, trocamos emails e nos separamos porque eu precisava ir pra outro terminal. Mas, antes disso, tiramos uma foto juntos para ficar na memória.

Eu que achava que com o carrinho já tinham acabado os meus problemas percebi que ele não poderia passar para o outro terminal, então foi mais um perrenguezinho chegar até ele. Chegando lá, quis pegar o tax free, mas a fila tava enorme e eu ia ter que esperar no mínimo uma hora. Coloquei na balança e o dinheiro que eu receberia não pesou tanto. Então, fui pesar minhas malas. 1ª: 40,5 kg. 2ª: 35 kg. Mala de mão: 10 kg. Putain.

Eu tinha direito a 2 bagagens de 32 kg, mas como me livrar de mais de 10 kg? Abri as malas e comecei a jogar fora tudo que eu não fazia questão. Tênis e bota que já estavam em estado de petição de miséria e, pela peneira da minha mãe, já era pra eu ter jogado fora há muito tempo. Papéis, papéis, papéis.

Tirei uns 4 casacos pra vestir, enxutei uns 16 livros na minha bolsa (não na bagagem de mão, na bolsa mesmo) e todo o resto na minha bagagem de mão, a qual eu esperava que não me pesassem. Resultado: primeira mala com 31,8, segunda mala com 31,7 e eu com 5 casacos e cachecol num calor da porra – apesar do inverno de fora, no aeroporto tava bem quente. Minhas costas começaram a doer, mas tomei coragem e fui despachar as minhas malas. De cara, pediram pra pesar a bagagem de mão. Descobri que, a princípio, eu tinha direito a 5 kg e que eu tava com 15. A moça me pediu pra me livrar de algumas coisas pra alcançarmos 10, que aí ela deixaria passar. Eu tirei o computador e a câmera e deixei num saco separado. Vesti mais um casaco e pesei de novo. Ainda 12kg. Eu disse que ia vestir tudo e ela teve pena. Eu disse que depois de um ano é bem difícil respeitar esses limites de peso. Ela foi gente boa e deixou passar, mas quand même tava super difícil andar com aquele peso todo. Depois ela ainda quis me dizer que eu tinha direito a 23kg, mas isso só se você compra a passagem da Europa. Se você compra ida e volta do Brasil, também tem direito a 2 de 32 na volta. Ela ligou para alguém para confirmar que era realmente a minha volta porque a minha reserva estava zuada desde o meu vôo de ida por culpa da incompetência da empresa onde ela trabalha, mas isso é uma história pra depois – embora tenha acontecido no começo (eu já disse que o meu tempo é psicológico). Consegui me livrar das bagagens grandes e fiquei sofrendo com a menor, a bolsa com uns 5kg ou mais, lotada de livros, e o saco com o computador e a câmera. Foi uma pena eu não ter despachado mais uns quilinhos. Embarquei, passei pela polícia, tive que tirar tudo da mala e recolocar de novo e cheguei, enfim, ao portão de embarque número 16. Faltava 1h. Sentei com as minhas companheiras malas e fiquei falando com alguns amigos e com a minha mãe pelo whatsapp. É amanhã que vou vê-los. Amanhã. Depois de um ano.

Entrei no avião, achei um lugar lá na frente pra minha mochila e deixei todo o resto aqui no chão comigo, do lado dos meus pés. O sono do dia inteiro foi embora. Dei à bientôt aos meus amigos quando eu ia decolar e desliguei o celular. Comecei a ver uns filmes. Primeiro comecei a ver um do Woddy Allen, mas depois percebi que eu queria uma comédia bem bobinha, era o momento. Achei uma comédia romântica idiota e assisti. Depois vi um filme (Stuck in Love) sobre uma família em um ano complicado pra cada um dos personagens. Terminei o filme chorando horrores, já nem sabia porque. Não foi pelo filme. Foi porque acabou. Não tinha nada a ver com o filme.

Fui ao banheiro e tentei secar minhas lágrimas, mas elas insistiram em continuar caindo. Voltei pro meu assento e o cara a 2 poltronas de mim perguntou se eu tava bem. Eu respondi que sim, mesmo ele tendo percebido que not at all. Lyon me manque déjà.

Peguei o computador e comecei a escrever tudo que me viesse à cabeça. E agora eu to pensando: como explicar o que foi esse ano pra mim? Como passar pro papel tudo isso?

Tudo começou quando eu peguei o vôo de ida. Não, começou muito antes. Começou quando o meu primo me convenceu a fazer intercâmbio. Ou ainda quando eu comecei a estudar francês. Ou ainda quando eu, desde pequena, dizia o quanto eu queria aprender francês e ir pra Paris. Ou ainda quando meus pais escolheram o meu nome, o único nome feminino com o qual acordaram: Gabrielle. Avec 2 L.

Não importa o que exatamente determinou que eu viesse pra França. Tudo determinou, as coisas não são assim divisíveis como parecem, é tudo influência e o passado ainda ta na gente, latente, assumindo outra forma a cada dia, se adaptando às nossas mudanças conforme elas apareçam.

O que importa é que eu não estava feliz, muito pelo contrário. E encontrei nessa cidade, nessa experiência muito mais do que eu jamais pensei que poderia.

Pude escutar o meu coração, sentir meu sangue circular pelo meu corpo, sentir cada pedacinho latejar. Permaneci imóvel. E, diante de todas essas sensações que eu me permiti sentir, pude perceber que, por vezes, as palavras não são suficientes. Respirei, me acalmei e decidi deixar o texto interminado. Não toquei mais nele e aqui ele está, como registro oficial de tudo o que eu pude colocar em palavras durante o vôo.

Je pense que c'est ça. Donc, à bientôt, Lyon.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Une lettre

À Aymeric et Guillaume



"Salut, des colocs!

Je pense que j'ai déjà essayé de vous expliquer ce que "saudade" veut dire, mais c'est vraiment un mot intraduisible. Quand même, c'est ce que je sens après 4 mois au Brésil. Saudade, beaucoup.
Donc, je pense que ça vaut la peine d'essayer une deuxième fois.
Le mot "saudade" exprime une mélancolie empreinte de nostalgie, sans l'aspect maladif.
Dans la nostalgie, il y a un sentiment mêlé de joie et de tristesse, un souvenir du bonheur, mais aussi la mélancolie d'une existence unique dans le passé et d'un retour en arrière impossible.
Autrement, la saudade exprime un désir intense, pour quelque chose que l'on aime et que l'on a perdu, mais qui pourrait revenir dans un avenir incertain.

Donc... Ce que je voulais vous dire est que j'ai saudades de notre coloc, de chaque moment qu'on a vécu ensembre. J'espère que tout va bien pour vous, du fond de mon coeur.

Je vous embrasse fort.

Des bisous brésiliens,
Gabi"

Un cri d'amour





Ainda sem entender, peguei o tram pela última vez em direção à Part Dieu. Com as malas de 1 ano inteiro, entrei no T1 com muita dificuldade. Apesar dos 80 quilos que eu estava carregando nas 2 malas e de mais uns 10 na mochila que estava nas minhas costas, o mais difícil mesmo era digerir que eu estava me despedindo de você, Lyon. Quem me conhece sabe que o taxi nem era uma opção, nananinanão. Cheguei no perrengue e vou embora nele. 70 euros de taxi? Preferi suar um pouquinho pra esquentar um pouco o meu coração que gelava tanto nesse momento. Já no tram, eu evitava até mesmo piscar pra guardar tudo de você que eu pudesse, por uma última vez, olhando através das janelas. E passamos por Perrache e eu me lembrei da primeira vez que eu pisei por aqui. Não sabia nem a direção da tal da residência onde eu fui morar. Insegura com a língua, desacostumada com o frio, me sentindo pequenininha. Muita coisa mudou, né Lyon? Agora eu conheço os nomes das suas ruas como a palma da minha mão. Tenho uma história pra contar em cada cantinho seu. Que saudades eu vou sentir... Foi bom. Bom demais.

Avisto a Place Carnot já com os olhos cheios d'água e a gente atravessa o Rhône. Vejo ao longe a Avenue Berthelot, que abriga a SciencesPo e o Comoedia, meu cinema preferido da cidade. Seguro as malas bem forte e o choro, mais ainda. Aí entramos na Rua de l'Université e me lembro das vezes que eu cheguei correndo pra aula de dança de manhã cedinho. No calor, era fácil, mas, conforme foi esfriando, ficava cada vez mais difícil me levantar da cama. Logo, a Rue de Marseille me derruba. Uns grandes amigos moravam por lá e perdi a conta de quantos bons momentos tive por ali. "Calma", eu digo pra mim mesma me policiando. "Também vai ser bom voltar", repito ininterruptamente enquanto respiro fundo e com vagar. Rue Montesquieu, casa da Mari, uma das minhas melhores amigas dessa experiência. Guillotière, quantas histórias. João, Patrick, Levy, Magno. Nessa altura do campeonato, já desisti de segurar as lágrimas. Mas não soluço, choro aquele choro emocionado no qual elas caem silenciosamente, choro de saudades antecipadas. Logo, logo, a Part Dieu vai chegar. Me concentro nas minhas coisas, vejo se está tudo em seu devido lugar. Enxugo os olhos. Uma senhora esbarra em mim sem querer e diz:

- Escussez-moi, Mademoiselle.
- C'est pas grave, Madame.

Meus olhos enchem d'água novamente. Eu sorrio pra ela e ela me sorri de volta.

Chegou. Salto com muita dificuldade com as minhas 2 malas e com a mochila nas costas, uns 100 quilos ao todo. Corro pra chegar com tranquilidade na plataforma. Quantos rostos, quantas malas, nunca vi a Part Dieu tão lotada. Isso que dá voltar pra casa pro Natal, pelo visto todo mundo está fazendo o mesmo por aqui. Só que eu, ao contrário desses nacionais, vou pra Paris pra pegar um vôo pro Brasil. Sim, pro Brasil, hoje mesmo. Amanhã piso em terras verdes e amarelas novamente. 

A muito custo, entrei no trem. Lotado, tive que deixar uma mala em cada vão que fica entre os vagões. A mochila e a sacola extra levei comigo e coloquei acima do assento. Deixei à mão vários cadernos pra escrever tudo que estava se passando pela minha cabeça confusa naquele instante. Lyon, ma belle Lyon, c'est pas possible que nous soyons finies. 

O trem começa a andar e eu respiro bem fundo. Aí o meu vizinho de assento começa a puxar assunto. Perguntou o que me aflingia. Eu tentei resumir todas as emoções que tomavam conta de mim enquanto eu as narrava. Ele sentiu tudo junto.


Com um sorriso simples e atencioso, dividiu um pouco da sua história comigo também. Vivia no Canadá, longe da família. Sentia muita falta deles. Estava na França para visitar a irmã e acabou aproveitando para conhecer Lyon. Adorou a cidade, não poderia ser diferente. Estava no trem indo para Paris para, afinal, encontrar a irmã, depois de muitos anos sem vê-la. Ela já estava casada e ele tinha 2 sobrinhos que só conhecia por skype. Dava pra ver o quanto ele estava ansioso pelo reencontro.

Ele tinha um francês engraçado. Não entendo muito de sotaques, talvez fosse um sotaque do Canadá, je sais pas. 

Ele disse adorar samba e até arriscou uns nomes: Gilberto Gil, Chico Buarque, Martinho da Vila. Achei curiosa a sensação. Engraçada. Esquentou o meu coração lembrar desses cantores, lembrar do samba, lembrar de todas as vezes que saí para dançar e voltei às 5h da manhã acabada. Foi bom, pensei que no Rio a vida poderia me sorrir também. Bastava que eu me esforçasse para olhá-la com ternura e sorrisse à ela primeiro.


Depois de muito papo e recomendações musicais, chegamos em Paris. Eu estava nervosa, pois tinha 3 malas super pesadas e sacolas espalhadas para tudo que é braço. Precisava tirar tudo do trem muito rapidamente, a despeito da fila e da antipatia de certos franceses, uma vez que este iria continuar a sua rota para outras cidades. Acho que o ponto final era em Lille, se eu não estou enganada.

O meu amigo recém-conhecido me ajudou no sufoco: sem ele, talvez eu tivesse perdido alguma das malas, afinal o povo francês, regra geral, não facilita na empatia e paciência.

Em seguida, nós nos despedimos e fui para o terminal 2 despachar as malas de uma vez. Quase não tive tempo para digerir o au revoir, pois pesei as malas e vi que uma estava com 40 kg e a outra, com 36. Precisava deixar as duas com 32 cada, então tratei de selecionar o que dali eu iria vestir, jogar fora ou entulhar na mala de mão. Em meio à missão, arrumei uns espectadores para me assistir, não sei se torcendo por mim ou apenas se divertindo com a minha angústia. Não muito tempo depois, enfim, bati os 32 kg nas duas malas e me dirigi para o check-in.

Após conversar com a atendente e convencê-la a me deixar embarcar com uma mala de mão com 11 kg, uma bolsa atarracada de coisas e um saco extra com computador, câmera e mais alguns muitos livros pra contar história, agora eu só tinha que esperar o vôo.

Anestesiada, vaguei pelo Charles de Gaulle como quem não toca os pés no chão. Eu nem estava ali naquele momento, não entendia bem o que se passava. Sobre essa parte, mal posso relatar lembranças, pois me falta consciência do que senti. 

Algumas horas depois, entrei no vôo toda carregada e, felizmente, encontrei alguns brasileiros simpáticos que me ajudaram a guardar parte das minhas tralhas no bagageiro. Sentei no assento com o resto delas, tratei de tomar o meu segundo rivotril para conter a ansiedade que se lançava e se espalhava pelo meu corpo e fiquei olhando pela janela esperando o avião decolar. Do meu lado, a mulher e o homem que dividiam comigo a fileira da direita não paravam de falar um segundo. A minha dor de cabeça, já latente há uma semana, ganhava força a cada risada histérica da minha colega de vôo. Para piorar, o meu medo de avião começou a se instalar, de peu en peu

E, então, decolamos. Apesar do medo, fiz questão de olhar pela janela para registrar em imagens o fim do meu ano na França, dans ce beau pays.

No entanto, as lágrimas me invadiram de forma descontrolada. Soluçando, abri o computador e comecei a esccrever: páginas e páginas, sem ordem, aparentemente sem nexo, embora todas absolutamente necessárias. Era isso ou um grito interminável: optei por digitá-lo.

Me parece que, quase um ano depois desse dia marcante, o grito ainda não se acabou por completo. A cada vez que eu toco nesses fragmentos palavreados de você, ma belle Lyon, alguma coisa dói muito lá no fundo e, por vezes, ainda me sobram lágrimas para permitir que você entre um pouco mais em mim, poro por poro, agora por meio das lembranças que eu carrego comigo de cada uma de suas estações.

Acontece, ma chérie, que as palavras, embora quase sempre me sejam libertadoras, nunca me soam suficientes para você. Elles sont pas sufies.

Ainda assim, hoje eu precisei gritar por meio delas: era isso ou multa condominial e polícia na porta. Danos contidos, meus vizinhos agradecem. 






sábado, 27 de setembro de 2014

Rotina


Ela sempre dorme na mesma posição: de bruços, quase sempre só de calcinha. Quase todas as noites ela tenta dormir abraçada a ele, seja com ele por cima, seja com ela por cima, seja com um dos dois por trás fazendo conchinha. No entanto, as tentativas são em vão, simplesmente inúteis. Quando percebe que ele já está caindo no sono, prefere desatar os braços e pernas logo para evitar ter que acordá-lo em pleno sono profundo. Quanto antes, melhor. Então, deita de bruços, se ajeita o mais confortavelmente possível no travesseiro e fecha os olhos, esperando o sono chegar. Por vezes, atrelaça os pés nos dele para lembrar que ele está ali ao lado e que, na manhã seguinte, não terá ido a lugar nenhum.

De manhã, a despeito de todo o esforço que ele faz para não acordá-la, ela acorda. Além de ter o sono leve, percebe a sua movimentação e não quer deixar de dar um beijo de bom dia antes dele ir pro trabalho. De vez em quando, aproveita para tentar seduzí-lo a ficar alguns minutinhos a mais na cama com o carinho nas costas e o cafuné que ele tanto gosta. Na maioria dos dias, consegue se levantar e vai até o quintal, abre a geladeira, pega o leite e vai até a cozinha, religiosamente, para preparar o toddy dele e garantir que ele não vá trabalhar de jejum. Algumas vezes, prepara até um sanduichinho. Já em outras, se dá ao luxo de escutar o conselho carinhoso dele, ao pé do ouvido, de continuar dormindo com tranquilidade. Nessas, ela sorri quase sem conseguir abrir os olhos, e solta o "bundinha", já habitual dos dois, um bom dia matinal leve e divertido.

Como que numa rotina maçante e deliciosa, ele se veste, se despede da mulher e companheira com quem divide a cama, a casa e a vida inteira e vai trabalhar, mais um dia.

Deixa a casa sem vida para ela por algumas horas. Quando ela desperta de vez, vai até a sala, se deita um pouco com o seu gato felino que divide o teto com o casal e fica alguns bons minutos assim. Em seguida, se arruma, faz os seus afazeres matinais do dia e vai para o trabalho.

Chegada a noite, ele a busca também religiosamente no trabalho que fica a poucas quadras de casa, os dois voltam de mãos dadas contando um ao outro dos grandes pequenos acontecimentos do dia, ele abre o portão do prédio, ela entra, ele abre a porta do meio, ela entra e vai caminhando pelo corredor, ás vezes animada, ás vezes nem tanto e, então, ele abre a portinha da casa dos dois, os dois entram e o apê volta a ter vida. Cada vez mais.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Pro amor não solar



Quem me conhece sabe que eu adoro fazer doces: biscoitos amanteigados, bolos, brownie, petit gateau, torta de limão, brigadeiro e tudo mais que temos direito. Hoje, eu tava fazendo um brownie de tarde e me distraindo com isso para deixar o estudo pra prova de lado, pros 47 do segundo tempo, comme toujours. Pra quem gosta, não tem tanto mistério, mas é claro que é preciso tomar algumas precauções pro seu doce sair como o desejado. Com paciência e afeto - e, de quebra, uma receita legal - sai sempre uma delícia. Dá errado quando a gente tá com pressa, tá impaciente ou sem vontade, negligente... Prestando atenção nas medidas, mexendo bem e, se possível, peneirando tudo que está em pó (farinha, açucar, chocolate, etc) e separando a gema da clara pra clara em neve coroar a fofura da massa, o brownie fica uma delícia, pode acreditar. Ah! Mais uma coisa importante! Claro que não pode esquecer de não abrir o forno nos primeiros 20 minutos, né? Senão o brownie ou bolo podem solar e ir pro beleléu. 

A tempo, para tranquilizá-los, já vou dizendo que não virei blogueira de receitas de cozinha, não teria paciência nem talento pra tal. Mas é que hoje, enquanto eu preparava o tal do brownie, me ocorreu que com os relacionamentos funciona mais ou menos do mesmo jeito. Vou explicar o meu ponto.

Bom, não sei bem se acontece por obra do acaso ou do destino. De que lado você está? Em qual deles você acredita? Vou te dizer que, nesse caso, pouco importa. O que eu sei é que um deles - eleja o seu preferido - cisma em juntar pessoas umas com as outras num emaranhado de risos, corpos, conversas, olhares, cheiros e aí acontece que vez ou outra essa junção simplesmente funciona. Parece até mágica. Desse encontro, um infinito de possibilidades se anuncia. É que o amor é assim, alguma coisa entre a realidade e a magia. C'est pas rationnel, mais ça marche.

E da junção dessas duas pessoas que nunca haviam sido juntadas antes nasce alguma coisa nova, e o mundo muda de cor e de forma e as pessoas envolvidas, idém, mudam junto. E a gente descobre um novo jeito de encaixar a cabeça no peito dele, de abraçar na ponta dos pés, de fechar os olhos enquanto ele beija o nosso pescoço. Um novo jeito de fazer cafuné, de enroscar os pés nos dele, de aranhar as costas, de escolher o restaurante pra ir jantar, de olhar e escutar enquanto o outro desabafa, de calar e de falar pelos cotovelos conforme a situação pedir e de tudo o mais. Uma nova forma de deixar bilhetes surpresas, de dividir a cozinha juntos, se revezando entre o preparo do almoço e os beijos de cumplicidade. Um jeito completamente novo de fazer sexo. E outro de fazer amor. Uma maneira diferente de iniciar conversas seríssimas - ou super banais. É você e um outro, e de vocês somados surge uma terceira coisa nova e mutável, conforme o movimento de um e do outro. 

É leve. E gostoso. E não é muito diferente de preparar um bolo. Pra ficar no ponto e derreter na boca, tem que caprichar no preparo, c'est ça

Pois que a gente esteja sempre dosando paciência e afeto, companheirismo e tesão, nós dois e cada um e, claro, realidade e magia, ingredientes estes tão fundamentais pro amor não solar.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Fragmentos de Lyon

Honestamente, eu não sei mesmo porque eu vim. A mim, parece que eu entrei numa máquina que foi me jogando de um lado pro outro e me fazendo fazer tudo o que eu fiz até chegar aqui. E, quando eu saí, já era Lyon, já era eu, já era esse status. Parece que antes foi só um sonho ruim. E eu sei, dentro de mim, que depois isso tudo aqui vai me parecer nada além de um sonho muito bom. E a realidade, onde ela está? Pode mesmo ela ser boa? Talvez só dependa da gente. Volto com essa certeza, sem caminhos certos do que fazer, mas em paz, comigo mesma no controle da minha vida. 

quarta-feira, 7 de maio de 2014

do amor


fechei meus olhos amarelos para não te olhar nos seus azuis da cor do mar,
esses que tiram de mim toda a minha razoabilidade, meu senso crítico

e aí a minha raiva evapora, vai embora num triz
e você me tem nas mãos
assim, mais uma vez,
fácil demais

dos amarelos, desceram lágrimas mudas
que nem me dei o trabalho de enxugar

o fato é que
o amor é mesmo uma droga,
mas ainda pior é não saber amar

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Feromônios



Você me disse que se apaixonou naquela tarde que foi lá em casa pra cozinharmos juntos. Você estava comandando o fogão e eu cheguei por trás suavemente e te dei um beijinho na bochecha esquerda, denunciando o meu lado carinhoso transbordante. Mas eu duvido, acho que não foi nada disso. Não foi aí. Nesse momento, pode até ter surgido um carinho, uma vontade de cuidar tipicamente sua, mas paixão? Acho que essa teve a ver, antes de tudo, com os nossos cheiros, repletos de feromônios.

Esse tal cheiro que me faz fechar os olhos sempre que eu te abraço pra que eu possa me concentrar em sentí-lo melhor, taking my time, sem desperdício; que me faz querer ficar nesse abraço, morar nesse abraço, viver nesse abraço (e até morrer nesse abraço, por que não?) - pelo menos por mais 5 minutinhos, vai.

O despertador toca, você levanta pro trabalho, eu acordo junto e fico me espreguiçando na cama, olhando você se arrumar e torcendo para que ainda dê tempo de mais um abraço. Você olha pra mim, eu olho de volta e sorrio já prevendo que te ganhei por mais uns minutinhos, você tira os sapatos que já tinha colocado, se ajeita embaixo do edredom, coloca os seus braços em volta de mim e me aperta forte, desafiando as minhas costelas. E, nesse momento, os cheiros apoderam-se da gente de tal maneira que o abraço se transforma num bom dia um pouco mais vivaz... Você diz que quer me sentir um pouco antes do batente. Eu sorrio e mordo os lábios: Combinado. Desabotôo a sua calça, baixo o zíper, a sua calça e cueca e você, enquanto olha nos meus olhos com esses olhos azuis que me dão tremeliques no estômago, afasta a minha calcinha pro lado. É de manhã, sexo de bom dia, então nem se dá o trabalho de tirar ela fora. Me adentra com calma, me sente pedacinho por pedacinho, sem desviar o olhar. Eu aranho as suas costas e me aproprio dos seus ouvidos com gemidos.

Durante essa dança matinal, o nosso pas de deux, os cheiros se confundem, se fundem, numa mistura sem fim. Já nem sabemos mais onde acaba o meu e onde começa o seu.

Você diz que vai gozar. Assim, quase sem falar. Disse ou só pensou? Pedido ou aviso? Eu também to quase lá. E te digo, no mesmo tom. E aí que, finalmente, acontece aquele encaixe milimétrico; o disparo; o suspiro final; la petite mort. E não foi à toa que os franceses nomearam o nosso amigo orgasmo assim, não é? E quando os dois quase morrem juntos, tem coisa melhor? A ilusão de que somos um só, nem que seja apenas por alguns poucos segundos... Gozar com o outro exige cumplicidade, entrega - que nem na dança, ora pois!

Te abraço forte por um instante, respiro fundo e vou soltando aos poucos. Você tomba pro lado, olha pro teto, sincroniza a sua respiração com a minha, vira a cabeça pra mim e vira a minha com a sua mão carinhosamente pra você. A gente se olha, ri um pro outro mostrando os dentes e diz, simultaneamente: "Bom dia".

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Chissà



Olhei fundo nos seus olhos durante o nosso último sexo molhado e... alcancei você. Tão frágil, tão bonito, puro carinho. Não queria me deixar ir. E eu não queria que você me deixasse também. Mas... c'est la vie, cheia de encontros e desencontros. Eu fui, deixando um pequeno bilhetinho pra você antes de entrar no ônibus. Você me olhou surpreso e nem tentou esconder que os seus olhos estavam ficando molhados. Me puxou de volta pra um último abraço bem forte com gosto entalado de saudade. Espero que você tenha entendido que, na verdade, eu queria ter dito muito mais do que eu de fato disse. Eu sei que você sabe. Uma boa vida pra você e quem sabe a gente ainda se esbarra por aí, mundo afora... Chissà.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Magno



Início de outono europeu, começando a esfriar de leve, amigos em casa, horas e horas pra fazer o jantar, afinal o mais gostoso de tudo aquilo era justamente a união, a falta de pressa, os risos calmos, soltos, livres e serelepes. A trilha sonora mista ao fundo, democrática, com músicas em várias línguas. Foi assim que você apareceu na minha vida. Você chegou pra mim nesse cenário mágico. Sua mancha na cara, seus óculos grandes e o seu riso mais sincero do mundo. Suas cantorias, suas coreografias e seus abraços repentinos. A brasilidade em forma de amigo. E põe amigo nisso.

Foram noites em claro falando o que dava na telha, abrindo baús pesadíssimos repletos de loucuras, traumas, amores, family issues e tudo e qualquer coisa que a gente sentia que deveria falar. E, passado um tempo, nem precisava mais falar. Era só olhar e, ás vezes, nem olhar. Nos entendíamos pela falta dele, assim como pela falta do riso e pela falta do encontro. Era tudo muito fácil, muito lógico, quase como se nós mesmos sentíssemos a dor e a alegria do outro.

Meu amigo, meu grande amigo de toda essa experiência maravilhosa que Lyon me deu, eu só tenho a te agradecer. Obrigada por tudo que eu nunca vou conseguir colocar em palavras. Eu me apaixonei e me reapaixonei por você mil vezes nesse intensivo de nós dois que fizemos desde que você pisou lá no meu apartamento para um jantar descompromissado. As viagens, as tardes, as festas, enfim, tudo o que vivemos juntos foi muito especial pra mim, mas principal e simplesmente porque você que estava comigo nesses momentos. Merci, mon chéri, te espero por aqui.

As faixas amarelas



Passei por cima de mim mesma várias vezes por você. É que você chegou num momento que eu já estava cansada, muito cansada. Cansada de perder pessoas importantes para mim por orgulho. Mas, ironias da vida, depois de ter feito tanta gente sofrer com isso, não é que eu fui me envolver com uma pessoa exatamente assim, extremamente desconfiada e orgulhosa? Eu achei que eu ia ceder um pouquinho e que você, vencido, viria com o resto. Eu andaria metade da estrada e a gente estacionaria os carros, um de cada lado dela, atravessaria e se encontraria exatamente no meio, em cima daquelas duas faixas amarelas. Elas alertariam para a contra-mão e diriam que não era permitido ultrapassar. E eu imaginava que você não ia dar a mínima para elas, exatamente como eu queria. Nos beijaríamos ali mesmo, em cima das malditas. Pra ontem, pra anteontem, para antes de anteontem. Com pressa. Coisas da esfomeada, a tal da urgência de amar.

Mas, ás vezes, acontece dessa urgência ser unilateral. O outro até tem algum sentimento por nós, mas não podemos esquecer que a gente toca o outro cada um à sua maneira; e, da mesma forma, a gente sente o outro cada um à sua maneira. Ás vezes, a química é evidente, mas pode ser que ela não baste pra você ou pra mim. Pode ser que eu queira receber uma ligação sua no meio da semana com você perguntando como foi o meu dia, deitado na cama, só com os pés para fora, ainda calçados, olhando pro teto, sorrindo e tirando o sapato esquerdo com o pé direito e vice-e-versa. Pode ser também que eu queira escutar exatamente o que você fez no trabalho hoje e saber de todas as picuinhas que te estressam - e, quem sabe, até te fazer uma massagem depois disso pra você relaxar? Pode ser ainda que eu queira cuidar de você quando você tiver febre, fazer uma comidinha caseira ou pedir alguma coisa pelo telefone; fazer cafuné no seu cabelo ou te distrair te contando uma história engraçada; pegar um filme na locadora (sim, ainda adoro pegar filmes em locadoras) ou me render ao seu apreço pela tecnologia e baixar algum que acabou de entrar em cartaz e você tava louco pra ver - prometo que eu faço pipoca e tudo! Numa terça-feira que a gente não trabalhasse - afinal, somos os dois freelancers -, a gente iria passar a tarde inteira na praia ou então só tomaríamos um sorvete na esquina. Num sábado, você sairia com os seus amigos e ficaria de ressaca o domingo inteiro, mas, de repente, no fim do dia poderíamos pegar um cinema, o que você acha? Você me contaria o que a bebedeira rendeu pra cada um de vocês na noite anterior. A gente riria das histórias se repetindo. Na quinta-feira, eu iria com alguns amigos pro Baixo Gávea, pra Lapa ou pra São Salvador e você chegaria lá, me daria um beijo molhado e passaria a noite sentado em algum pé sujo (ou até mesmo no meio-fio) conversando com a gente sobre tudo e qualquer coisa. Ou não, ou ficaríamos 1, 2 semanas sem nos ver e depois mataríamos a saudade com uma noite daquelas. Ou com Mc Donald's às 3h da manhã. Ou melhor, com Fornalha. Tanto faz, o que importa mesmo é a companhia. Você poderia tocar violão pra mim qualquer dia desses e eu poderia cantar com a minha voz desafinada e com meus cabelos despenteados. A gente poderia também enrolar 4h pra sair da cama, fazer planos de viagens e de fugas por aí, colocar a pizza congelada no forno ou ir prum bar ver a luta que você tanto queria ver - apesar de eu não dar a mínima pra lutas. Ou, ou, ou.... são tantas as possibilidades. É, pode ser que eu queira. Pode ser que.

A gente tem a mania de achar que a vida vai acontecendo, como se fôssemos exclusivamente sujeitos passivos das nossas próprias, quando na verdade podemos ser protagonistas e até roteiristas delas. Esquecemos de como as relações são frágeis e de como podemos deixar alguém passar por orgulho, desatenção, etc e tal e, com essa pessoa, um leque enorme de potenciais momentos bons e ruins que poderiam fazer toda a diferença pra gente. E, numa dessas, encontrar um, dois, três, vários companheiros para a vida; não só amores românticos, mas também amigos, colegas e familiares há muito afastados - pessoas essas que nos mostram várias facetas delas e de nós mesmos; que estão lá para nos irritarem vez ou outra, mas para aquele ombro e palavra amiga quando precisarmos também, que nos amam por tudo que a gente deixou elas verem da gente. Parceiros. E, a partir de então, a gente vai, no nosso tempo, jogando a desconfiança prum lado, o orgulho pro outro e vamos até o meio da estrada, em cima das faixas que nos advertem para a contra-mão e nos condenam dizendo que não podemos ultrapassar de forma alguma. Decidimos não dar a mínima para elas. Quando tomamos essa decisão, pode ser que o outro já esteja ali na faixa nos esperando. Ou pode ser que ele não tenha chegado ainda, tenha pego um trânsito filho da puta pelo caminho. Ou ainda, pode ser que ele tenha chegado do outro lado da estrada, tenha estacionado o carro, mas não tenha tido vontade ou coragem de sair dele até então. Ou, pior, pode ser que o outro já tenha feito todo esse trajeto, já tenha deixado o carro, abandonado a desconfiança e o orgulho, atravessado metade da estrada e ficado nos esperando em cima da faixa. E pode ser que ele tenha se cansado de passar tanto tempo ali, nu, sozinho. Pode ser que tenha voltado para o carro, soltado o freio de mão, acelerado e retornado para o seu ponto de partida ou prosseguido para o destino seguinte. Tantos "pode ser que", tantas variáveis... nunca se sabe, on ne sait rien. Por via das dúvidas, tentemos não perdê-lo. Quando se tratar de alguém especial pra chamar de parceiro, que a gente não dê ouvidos às faixas amarelas. Elas já estão ali, juntas, em dupla, análogas e proporcionais em meio à toda aquela contra-mão em volta delas e à impossibilidade de ultrapassagem, assim é fácil mandar e desmandar, não é mesmo? Então, que essas ordens se restrinjam ao trânsito e nada mais, pois em matéria de amor elas não estão com nada. 

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O último cigarro

Ela estava num bar papeando com alguns amigos. Palhaça, contava uma história atrás da outra - e uma mais absurda que a outra. Era o seu jogo, adorava ficar na dúvida sem saber se os outros riam dela ou com ela. E se fazia de sonsa, em tudo. Sabia como manipular cada um à sua maneira. Pesava cada detalhe, cada pinta, cada toque. E a fórmula sempre dava certo. Resultado? Uma legião de apaixonados e doidinhos da cabeça. Ela gostava.

De repente, ele chega. Conhecia um dos amigos dela e acaba sentando na mesa. Ela e ele já se conheciam já anos, amigos de amigos, mas nunca haviam ficado. Não que não tivessem tido vontade, a tensão sexual entre eles era evidente, mas ele sempre tava namorando. Ele, sério quando namora. Ela, séria com os que namoram, não acha legal ficar com cara comprometido, então nem provocava. Mas dessa vez não, ele estava solteiro.

Ela logo percebeu porque ele estava se comportando diferente, mais solto. Ela continuou com as suas histórias e ia chegando cada vez mais gente para escutá-las e rir (seja da garota ou com a garota). Ele ficou falando dos planos para o futuro, perguntando dos dela e dos amigos em comum dos dois. Se ela tinha notícias deles. Ela foi respondendo e entrando no jogo. Começou a olhá-lo muito fixamente nos olhos. Passava a mão esquerda suavemente pelo próprio pescoço enquanto isso. Pegou um cigarro, acendeu, puxou e tragou. Lentamente. Sem pressa. Mordia os lábios de temps en temps. Levantou-se tomando cuidado com os movimentos e se aproximou por trás, apoiando as mãos sob o peitoral dele. Isso tudo para dizer que ia ao banheiro. Ele já estava excitado e não conseguia disfarçar muito bem o transtorno que a menina estava causando em sua cabeça. Se adiantou e foi pegar uma cerveja enquanto ela estava no banheiro. Ela saiu, ainda mais bonita. Ele a esperava na porta com a cerveja gelada e com o copo extra. Ela riu, aceitou o copo e disse que pagava a próxima então. Ela disse para voltarem para a mesa e o pegou pela mão, carinhosa. Ele largou a mão e apertou a cintura dela, enquanto passavam pelo corredor que dava acesso à área com as mesas. Ela ia na frente. Fechou os olhos e suspirou. Chegando na mesa, sentou-se prestando atenção nas pernas, na postura, no sorriso, nos cabelos... em tudo. Queria estar irresistível para ele. E, de fato, estava.

Passados uns 10 minutos de conversa fora com o resto do pessoal, ela disse que iria lá fora no posto atrás de um cigarro. Ele disse que a acompanharia. E foram. Já sabiam que não voltariam para o bar naquela noite.

Pela rua, andavam lado a lado com o assunto afiadíssimo, numa intimidade súbita que surpreendia ambos. E, então, ele lembrou que ainda tinha um cigarro. Pegou no bolso e entregou pra ela. Ela aceitou, sorriu e apoiou-se num murinho de uma casa antiga que ficava nessa mesma rua. Ele, na sua frente. Ela apoia um dos pés no murinho, deixa a alça direita do vestido cair pelo seu ombro e acende o cigarro com calma, ora o encarando, ora olhando para o céu, para baixo, para frente. Sempre confiante.

Ele pára de falar. Apoia-se no poste que ficava logo à frente e curte esse momento, observando cada trago da menina. Os dois sorriem quando os seus olhares se encontram, mas respeitam o tempo do cigarro.

Primeiro ele, depois o beijo.



quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

fluido

vem, se achegue, meu bem
e me conta um detalhe qualquer
que eu ainda não saiba sobre ti

quero alimentar esse nosso amor
e beber mais e mais de ti

serve um retalho qualquer
uma partícula que seja

é que faz muito calor aqui, agora
esse verão tá de doer, tá de lascar
então vem você aqui me regar
e me deixa te regar de volta

não me deixe evaporar de ti, meu bem
que eu não te deixo evaporar aqui também

sejamos líquido um no outro
balançando e dançando
nos misturando e nos tornando
um só


Já era, era amor

Ele sabia como fazer o negócio. Sabia muito bem. Desde o começo, a envolveu com o seu sorriso de boca fechada e com os olhos que a comiam ardentemente, desde a primeira vez que a viu. De início, ela se sentiu invadida e não gostou, quis que ele se afastasse, que a deixasse ir. Não quis dar intimidade. Apesar disso, ele persistiu e, aos poucos, embora continuasse se sentindo invadida, começou a gostar disso; foi desarmada, se rendeu.

 Ele a fez implorar, pedir por favor. O rapaz queria conversar por horas e horas, mas ela já estava ficando louca com aquela espera; com aquela delonga; com aquela demora. Estava virando um suplício para ela. A menina já havia imaginado todo o filme dos seus corpos entrelaçados. Queria que ele a consumisse, a penetrasse, a desvendasse e a mostrasse tudo o que ela poderia ser e ainda não sabia.

Ela não era virgem, mas ainda assim perdeu muitas virgindades com aquele homem. Ele a mostrou seu próprio corpo, seus próprios gostos, os seus detalhes e retalhos. Ela sentiu, através dele, o seu próprio sabor. E gostou. Muito. Via a cena como se fosse uma mera observadora no recinto. Via o seu sorriso estampado, entre gemidos, de olhos fechados. Mãos para o alto, dedos entrelaçados à cabeceira da cama, segurando a madeira firmemente.

Ele foi suave, gentil. E completamente diferente de todos os outros. Ele a olhava nos olhos durante toda aquela luxúria. As suas mãos eram fortes, seguras, sabiam exatamente onde ir e como agir. Ele a disse que sabia que ela não estava acostumada a sentir tanto prazer, e que aquilo era só o começo. Disse também que ela levava jeito pra coisa e que ainda ia fazer muito marmanjo sofrer nas suas mãos. Ele quis dizer entre as suas pernas, mas não quis ser deselegante.

Deselegante, afinal, era tudo o que ele não era nenhum pouco. Era elegante em tudo: na fala, na linguagem corporal, no sorriso, nas piadas, no toque e até mesmo nas inseguranças. A princípio, ele as escondia muito bem. Mas, de pouquinho a pouquinho, ela sacou que a segurança dele era aquela segurança tipicamente adolescente, que funciona como uma máscara para esconder todos medos e a imensa dificuldade de entregar-se. Ela sacou, mas achava graça, achava bonitinho. Estava tão envolvida que não conseguia ver nenhum defeito naquele homem. Tudo, sob seu olhar, virava peculiaridade, aptidão, capacidade e, portanto, qualidade.

Ele é um cara que tem uma linha de funcionamento na cama. Tem ordem, tem planejamento. Sabe o que vai provocar, o que vai fazer sentirem com cada gesto, com cada toque. Com certeza, ele deve fazer muito sexo. Todas as meninas devem querer. Todas devem ficar assim, que nem ela ficou. É um homem que, por detrás dessa máscara, tem medo. Provavelmente, arruma muitas conquistas para lutar contra esse medo. É isso que ele faz da vida, faz amor; faz com que todas fiquem caidinhas por ele e, assim, ele alimenta o seu ego e joga os seus medos pra debaixo da cama. Parece funcionar, mas nem tudo que parece é.

Ela deixou o seu corpo ser o que ele queria ser. Permitiu que ele buscasse, que ele encontrasse, que ele fosse exatamente o que ele era e nem sabia, e nem podia. O quadril, liberto. As unhas cravadas nas costas dele. Os cabelos descabelados, e belos. O corpo arrepiado, molhado. A boca seca. Puxava os seus cabelos, beijava o seu pescoço. Como se fosse morrer logo em seguida. Como se fosse a primeira e, ao mesmo tempo, a última vez. Aquele momento lhe pareceu o ápice de toda a sua vida. Mal sabia ela que depois dele ainda viriam muitos outros. Pensava que não, que se tratava de uma química linda demais para que se repetisse. Nunca mais aconteceria, julgava a mulher. Mulher que ela estava se tornando justamente naquele momento.

Quando os dois acabaram, ela se entregou ao colchão deitada, rendida, embeiçada, enamorada. Ao lado dele. Ficou olhando para o teto por alguns segundos sem entender bem o que tinha acabado de acontecer. Ele, carinhosamente, virou o seu rosto para ele e mergulhou os seus olhos nos olhos dela por minutos e minutos, sem pressa. Ela ficou surpresa que ainda estava viva, que aquilo era real. O frio alcançou o seu ventre mais uma vez e a sensação era de que várias borboletas estavam voando de um lado para o outro, fazendo altas acrobacias áreas, tudo dentro dele. Ela sentiu medo de que aquilo acabasse, e se não fosse recíproco?

Decidiu abandonar aquele pensamento, sabia que não era hora disso. Fechou os olhos e o beijou, tirando todo o seu fôlego. Ele tremia, também estava no mesmo transe que ela. Ela pediu mais. Agora que havia experimentado, não queria mais largar o osso. Ele ficou feliz de realizar o desejo dela. Esse e tantos outros. Todas as vezes, ela achava que ia morrer. O coração fazia que ia sair pela boca. Mas não saía, tudo se mantinha sob controle. Bem, pelo menos todos os seus orgãos e suas funções vitais. O mesmo não podia ser dito sobre as suas fantasias e os seus sentimentos.

Seguidamente, conversaram por horas. Falaram sobre o sentido da vida, sobre mortes difíceis que enfrentaram, sobre alguns bons amigos que cada um carregava na memória, sobre realização profissional e tudo o mais. Já eram íntimos um do outro, num instante. Em meio a uma pausa, os dois dormiram. Abraçados, enlaçados, entrelaçados. Ela sonhou muito naquela noite, mas mal se lembrou quando acordou.

E os dois acordaram juntos, lado a lado. Fizeram cafuné um no outro e se amaram mais algumas vezes antes de tomarem coragem para se levantarem. Nem escovado os dentes eles tinham, mas isso não prejudicou nenhum pouco os beijos. Muito pelo contrário. Ela disse que precisava ir. Ele discordou. Ela sorriu, com os olhos e com a boca. Ele sorriu de volta e a envolveu em seus braços por trás, enchendo o seu pescoço de beijos, repetidamente. Ela arrepiou e os dois se amaram mais uma vez antes dela sair pela porta da sala.

E ele, esperto que é, estava completamente certo desde o princípio: aquilo tudo era só o começo. Ela ainda entraria e sairia muitas vezes por aquela mesma porta. Os sorrisos se tornariam familiar e cada pedacinho dos seus corpos também. Já era, pois era amor.