sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Un cri d'amour





Ainda sem entender, peguei o tram pela última vez em direção à Part Dieu. Com as malas de 1 ano inteiro, entrei no T1 com muita dificuldade. Apesar dos 80 quilos que eu estava carregando nas 2 malas e de mais uns 10 na mochila que estava nas minhas costas, o mais difícil mesmo era digerir que eu estava me despedindo de você, Lyon. Quem me conhece sabe que o taxi nem era uma opção, nananinanão. Cheguei no perrengue e vou embora nele. 70 euros de taxi? Preferi suar um pouquinho pra esquentar um pouco o meu coração que gelava tanto nesse momento. Já no tram, eu evitava até mesmo piscar pra guardar tudo de você que eu pudesse, por uma última vez, olhando através das janelas. E passamos por Perrache e eu me lembrei da primeira vez que eu pisei por aqui. Não sabia nem a direção da tal da residência onde eu fui morar. Insegura com a língua, desacostumada com o frio, me sentindo pequenininha. Muita coisa mudou, né Lyon? Agora eu conheço os nomes das suas ruas como a palma da minha mão. Tenho uma história pra contar em cada cantinho seu. Que saudades eu vou sentir... Foi bom. Bom demais.

Avisto a Place Carnot já com os olhos cheios d'água e a gente atravessa o Rhône. Vejo ao longe a Avenue Berthelot, que abriga a SciencesPo e o Comoedia, meu cinema preferido da cidade. Seguro as malas bem forte e o choro, mais ainda. Aí entramos na Rua de l'Université e me lembro das vezes que eu cheguei correndo pra aula de dança de manhã cedinho. No calor, era fácil, mas, conforme foi esfriando, ficava cada vez mais difícil me levantar da cama. Logo, a Rue de Marseille me derruba. Uns grandes amigos moravam por lá e perdi a conta de quantos bons momentos tive por ali. "Calma", eu digo pra mim mesma me policiando. "Também vai ser bom voltar", repito ininterruptamente enquanto respiro fundo e com vagar. Rue Montesquieu, casa da Mari, uma das minhas melhores amigas dessa experiência. Guillotière, quantas histórias. João, Patrick, Levy, Magno. Nessa altura do campeonato, já desisti de segurar as lágrimas. Mas não soluço, choro aquele choro emocionado no qual elas caem silenciosamente, choro de saudades antecipadas. Logo, logo, a Part Dieu vai chegar. Me concentro nas minhas coisas, vejo se está tudo em seu devido lugar. Enxugo os olhos. Uma senhora esbarra em mim sem querer e diz:

- Escussez-moi, Mademoiselle.
- C'est pas grave, Madame.

Meus olhos enchem d'água novamente. Eu sorrio pra ela e ela me sorri de volta.

Chegou. Salto com muita dificuldade com as minhas 2 malas e com a mochila nas costas, uns 100 quilos ao todo. Corro pra chegar com tranquilidade na plataforma. Quantos rostos, quantas malas, nunca vi a Part Dieu tão lotada. Isso que dá voltar pra casa pro Natal, pelo visto todo mundo está fazendo o mesmo por aqui. Só que eu, ao contrário desses nacionais, vou pra Paris pra pegar um vôo pro Brasil. Sim, pro Brasil, hoje mesmo. Amanhã piso em terras verdes e amarelas novamente. 

A muito custo, entrei no trem. Lotado, tive que deixar uma mala em cada vão que fica entre os vagões. A mochila e a sacola extra levei comigo e coloquei acima do assento. Deixei à mão vários cadernos pra escrever tudo que estava se passando pela minha cabeça confusa naquele instante. Lyon, ma belle Lyon, c'est pas possible que nous soyons finies. 

O trem começa a andar e eu respiro bem fundo. Aí o meu vizinho de assento começa a puxar assunto. Perguntou o que me aflingia. Eu tentei resumir todas as emoções que tomavam conta de mim enquanto eu as narrava. Ele sentiu tudo junto.


Com um sorriso simples e atencioso, dividiu um pouco da sua história comigo também. Vivia no Canadá, longe da família. Sentia muita falta deles. Estava na França para visitar a irmã e acabou aproveitando para conhecer Lyon. Adorou a cidade, não poderia ser diferente. Estava no trem indo para Paris para, afinal, encontrar a irmã, depois de muitos anos sem vê-la. Ela já estava casada e ele tinha 2 sobrinhos que só conhecia por skype. Dava pra ver o quanto ele estava ansioso pelo reencontro.

Ele tinha um francês engraçado. Não entendo muito de sotaques, talvez fosse um sotaque do Canadá, je sais pas. 

Ele disse adorar samba e até arriscou uns nomes: Gilberto Gil, Chico Buarque, Martinho da Vila. Achei curiosa a sensação. Engraçada. Esquentou o meu coração lembrar desses cantores, lembrar do samba, lembrar de todas as vezes que saí para dançar e voltei às 5h da manhã acabada. Foi bom, pensei que no Rio a vida poderia me sorrir também. Bastava que eu me esforçasse para olhá-la com ternura e sorrisse à ela primeiro.


Depois de muito papo e recomendações musicais, chegamos em Paris. Eu estava nervosa, pois tinha 3 malas super pesadas e sacolas espalhadas para tudo que é braço. Precisava tirar tudo do trem muito rapidamente, a despeito da fila e da antipatia de certos franceses, uma vez que este iria continuar a sua rota para outras cidades. Acho que o ponto final era em Lille, se eu não estou enganada.

O meu amigo recém-conhecido me ajudou no sufoco: sem ele, talvez eu tivesse perdido alguma das malas, afinal o povo francês, regra geral, não facilita na empatia e paciência.

Em seguida, nós nos despedimos e fui para o terminal 2 despachar as malas de uma vez. Quase não tive tempo para digerir o au revoir, pois pesei as malas e vi que uma estava com 40 kg e a outra, com 36. Precisava deixar as duas com 32 cada, então tratei de selecionar o que dali eu iria vestir, jogar fora ou entulhar na mala de mão. Em meio à missão, arrumei uns espectadores para me assistir, não sei se torcendo por mim ou apenas se divertindo com a minha angústia. Não muito tempo depois, enfim, bati os 32 kg nas duas malas e me dirigi para o check-in.

Após conversar com a atendente e convencê-la a me deixar embarcar com uma mala de mão com 11 kg, uma bolsa atarracada de coisas e um saco extra com computador, câmera e mais alguns muitos livros pra contar história, agora eu só tinha que esperar o vôo.

Anestesiada, vaguei pelo Charles de Gaulle como quem não toca os pés no chão. Eu nem estava ali naquele momento, não entendia bem o que se passava. Sobre essa parte, mal posso relatar lembranças, pois me falta consciência do que senti. 

Algumas horas depois, entrei no vôo toda carregada e, felizmente, encontrei alguns brasileiros simpáticos que me ajudaram a guardar parte das minhas tralhas no bagageiro. Sentei no assento com o resto delas, tratei de tomar o meu segundo rivotril para conter a ansiedade que se lançava e se espalhava pelo meu corpo e fiquei olhando pela janela esperando o avião decolar. Do meu lado, a mulher e o homem que dividiam comigo a fileira da direita não paravam de falar um segundo. A minha dor de cabeça, já latente há uma semana, ganhava força a cada risada histérica da minha colega de vôo. Para piorar, o meu medo de avião começou a se instalar, de peu en peu

E, então, decolamos. Apesar do medo, fiz questão de olhar pela janela para registrar em imagens o fim do meu ano na França, dans ce beau pays.

No entanto, as lágrimas me invadiram de forma descontrolada. Soluçando, abri o computador e comecei a esccrever: páginas e páginas, sem ordem, aparentemente sem nexo, embora todas absolutamente necessárias. Era isso ou um grito interminável: optei por digitá-lo.

Me parece que, quase um ano depois desse dia marcante, o grito ainda não se acabou por completo. A cada vez que eu toco nesses fragmentos palavreados de você, ma belle Lyon, alguma coisa dói muito lá no fundo e, por vezes, ainda me sobram lágrimas para permitir que você entre um pouco mais em mim, poro por poro, agora por meio das lembranças que eu carrego comigo de cada uma de suas estações.

Acontece, ma chérie, que as palavras, embora quase sempre me sejam libertadoras, nunca me soam suficientes para você. Elles sont pas sufies.

Ainda assim, hoje eu precisei gritar por meio delas: era isso ou multa condominial e polícia na porta. Danos contidos, meus vizinhos agradecem. 






2 comentários:

  1. já faz um ano que você voltou? Lyon toujours dans nos coeurs <3 Te amo, Gabizinha:)

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  2. Beautiful, Gabi, just beautiful. Who else could make a story like that into something so poetic and at the so profound. Keep shouting, keep treasuring this feeling, and keep writing.

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