segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O que seria?

O seu quarto tem esse mistério engraçado que de mistério nem tem tanta coisa assim. É que a luz está acesa e, de repente, apaga. Sempre foi assim. Mas não tenhamos pressa, pois minutos depois, sem regra alguma –pelo menos ao que nos parece-, ela reacende. O tal do mistério provavelmente se dá por um simples mal contato. Alguém não deve ter arrochado a lâmpada como ou tanto quanto deveria. Provavelmente foi isso, mas eu gosto de acreditar que é algo a mais. Como se o quarto tivesse vida. E eu realmente acho que ele tem um pouco, sabia? Cada informação se complementa e nos ajuda a completar esse quebra-cabeça que é esse cômodo onde você habita. As primeiras páginas de jornal pela parede, em linhas retas. A cama gigante com uma tanga de tartaruga vermelha e amarela acima dela, presa a outra parede. Os dois sofás, apertados no resto do espaço e convidativos como só eles, distribuindo aconchego. A mesinha de centro com as garrafas de dias atrás, os isqueiros e cinzeiros. E, claro, o resto do suco de laranja natural. A tevê que mal funciona à esquerda da mesa e as duas, juntas, tampando parcialmente a enorme janela que nos lembra que há um mundo lá fora. A janela, no momento, disfarça essa sua função, escondida por uma cortina laranja, bem bonita. E você, sentado no sofá à minha direita, com as pernas de índio, portando um sorriso amigo, testa os isqueiros que estão a sua frente pra ver se algum funciona. O primeiro, nada. O segundo arrisca soltar uma faísca, mas decepciona. O terceiro, idem, mas o quarto funciona. Você então o acende triunfante. Nessa hora, a lâmpada viva do seu quarto resolve apagar-se. Eu te olho fixamente. A chama do isqueiro queima o seu cigarro. Você traga com vontade, uma tragada daquelas há tanto ansiada. Prende, puxa e solta a fumaça em pequenas bolas. A fumaça sobe e eu observo a sombra dela na cortina laranja. É que você está brincando com o isqueiro agora e a sua chama, por sua vez, está iluminando a cortina. Que bonita a fumaça subindo, no seu tempo, anestesiando os nossos corpos, e todo o entorno. Eu me rendo ainda mais ao sofá, estou prostrada. Meus dedos estão separados um dos outros, abertos, unidos ao tecido que forra esse tal de sofá que, originalmente, ficava na sala. Que bom que decidimos trazer pro seu quarto, fica bem melhor aqui. Você abandona o isqueiro na mesa e sentimos a escuridão momentânea do ambiente. Eu respiro fundo e te sinto, apesar de não nos tocarmos. Sorrio de boca e olhos fechados, mas de alma aberta. Penso que esse deve ser o sorriso mais sincero, justamente esse sorrido no escuro. Não passa pelas nossas mentes, quando sorrimos esse sorriso, a intenção de mostrar para o outro que estamos felizes, satisfeitos, bem. Ele nada vê, não temos luz. Nós nada mostramos, apenas somos. É aquele sorriso de dentro pra fora, de quem sorri quase que por não resistir. O sorriso começa pelo coração, passa pelas veias todas e sai pela boca, anônimo, livre. Não está indo para lugar nenhum, ele simplesmente é, aqui e agora, sem olhares ou julgamentos. Me sinto feliz. Sinto o imã nesse sofá, nessa casa, nesse bairro e cidade. Sinto o imã que me puxa bem forte. Não tinha jeito, era pra eu ter vindo, já nem imagino um outro roteiro. O que seria de mim sem a chegada acompanhada de frio na barriga (e nas mãos; e nos pés; e no rosto; e na alma?). Afinal, era inverno quando eu cheguei por essas terras. O que seria de mim sem a solidão mais solitária de todas? Sem os beijos em mim mesma, debaixo dos edredons? Sem a dificuldade da língua, da falta de toque e de violão? Sem a estranheza de corpos, de clima e a ausência de miscigenação? O que seria de mim sem o primeiro abraço sincero em dias tão frios, sem as primeiras confissões do amigo, sem a língua materna proferida por ele que veio esquentar o meu coração? E ainda, o que seria de mim sem elas, tão práticas e simplistas, sempre em busca de uma festa e de um vinho bom? E, mais, sem aqueles que chegaram e me fizeram sentir lar, carinho, afago, pele, apego, cabelo, apelo. O que seria de mim sem eles? E as andadas, caminhadas, sozinha ou acompanhada. Longas, demoradas, de volta pra casa, principalmente. Aquele momento pra pensar. Primeiro, eu ia agasalhada e, depois, conforme foram passando os meses, os casacos foram sendo guardados na mala, substituídos por finos Cardigans até que desaparecessem. E, ainda, o que seria de mim sem as visitas? Tantas que me trouxeram um pouco de casa, de lar. O riso do amigo antigo. O reconhecimento do outro e de mim. Tantas histórias, tanta vida. Seguimos juntos, mais pra lá ou pra cá, mas sempre como parte um do outro. E o que seria de mim, ainda, sem os cappuccinos nas madrugadas na companhia do amigo-irmão que eu nem posso dizer que fiz, e sim que reconheci, por essas terras francesas? Cappuccino esse regado por histórias mil, sem roteiro, sem ordem, sem vez e, aparentemente, sem porquês. Mas tem porquê em tudo. Ou em quase tudo ou, pelo menos, em muita coisa. Será mesmo? E sem as racionalizações inacabáveis, como eu ficaria? Certamente mais sã, mas também mais vazia. E sem a ansiedade, sem o coração acelerado, sem o medo? E sem o primo, seja por skype, por email, por mensagem, ou por telepatia até. E sem ele, o que eu seria? E sem a dança, sem o corpo, sem o tempo pra puxar o ar e piruetar? Sem as viagens, sem as voltas pra casa, sem as dores nas costas pela mala pesada. O que seria? Sem o verão que foi chegando, sem os dias no parque deitada na grama, sem a camaradagem. Sem o cabelo curtinho, sem o olhar penetrante, sem o vestido vermelho. Sem as noites embriagadas, sem os livros engolidos, sem as páginas rabiscadas. Sem os papéis acumulando, sem os números atormentando, sem a saudade de casa. Sem os sonhos alucinógenos, sem as interpretações ora tranqüilizantes, ora apavorantes, mas nunca desconsideradas. Sem as aulas que me inspiraram, sem as madrugadas acordada repassando cada uma das possibilidades. Sem a imaginação, sem a verdade, sem o sonho, sem tantos adeus. O que seria de mim? Sem a sua barba embarassada, sem o riso solto do outro, sem a tatuagem daquela. Sem a bicicleta de dia ou de noite. Sem as descidas com o vento nos cabelos e no peito, sem a mão no freio. Sem as vistas da cidade, sem as novidades, sem aqueles cantinhos. Sem o medo, sem os resultados, sem as soluções. Sem seus envelopes que sempre traziam boas novas. É que ele disfarça e só me anuncia o que me cura, nunca o que machuca. Sem a falta do pai, sem a mudança do amigo, sem o tempo que nos separa uns dos outros. E cava; cava fundo, nos deixando cheio de buracos, cicatrizes, machucados. Sem a Itália, sem a pizza, sem o chianti. Sem o calor, sem a praia, sem o bronzeado. Sem os cachos de cabelo dela, sem a risada gostosa, sem as reflexões, sem o escrito no muro na piazza Santo Spirito. Sem nos perdemos, sem nos encontramos, sem os anjos pela estrada. Sem as fotos dos pés, sem a calma, sem as piadas. Sem os amigos preservados pelo tempo e distância. Sem a vista pro mesmo palácio depois de dois anos. Sem o reencontro e sem o abraço. Sem as cervejas no metrô, sem as conversas se poucas palavras e muito significado. Sem as marcas da guerra da Bósnia que também marcaram a mim. Sem o narguilé, os relatos e as marcas de bala nos prédios da cidade. Sem a mudança de casa, sem as malas pesadas, sem a ansiedade no peito. Sem a arrumação sofrida, sem a estranheza do momento. Sem a visita deles, sem os sofás abertos na sala com a gente prostrado. Sem os engradados de cerveja quente e sem a geladeira para gelá-los. Sem a fila de velovs, sem as escaladas de prédios e árvores. Sem os ônibus noturnos, sem o incômodo na lombar, sem as passagens baratas. Sem as informações na rua, sem os mapas mentais; sem as setas, sem as cabanas, sem o wi-fi. Sem o cabelo vermelho, sem o abraço da mãe, sem o esforço, sem as palavras de paz. Sem os mercados, sem os supermercados, sem os cartões-postais. Sem os olhares, sem os filmes, sem as lembranças, sem os suspiros. Sem as surpresas, sem os drinks, sem o italiano, sem as mãos atadas. Sem a volta pra casa, sem o resmungão. Sem o show inesperado, sem correr abraçadas, sem o prosecco do bom. Sem aniversário, sem a toca de jazz, sem ela feliz. Sem a nota que toca, sem a vontade de dançar, sem o francês cantado, sem. Sem a despedida, sem o tramway solitário, sem o soluçar. Sem as brasileiras verde-e-amarelas, sem o feijão preto, sem plantar bananeira. Sem a simpatia alheia, sem a sorte grande, sem essa missão. Sem eles, sem a fumaça, sem união. Sem MPB, sem samba, sem zaz, sem batidão. Sem batucada, sem bagunça, sem bordel, sem alienação. Sem beber no quai, sem amigos, sem abraço, sem vinho barato. Sem risada, sem coloc, sem festa, sem baseado. Sem bolo de chocolate, sem maldade, sem saudades nem novidades. Sem planos. Sem separação, sem divisão, sem “por que nós?”. Sem a carta da vó, sem choro, sem lembrança. Sem pressão, sem motivação, sem fita métrica. Sem vontade, sem boca, sem cafuné, sem palavrão. Sem dicionário, sem armário, sem armadura, sem porão. Sem contagem regressiva, sem frio na barriga, sem vento na cara. Sem volta do inverno, sem cinema, sem marca na cara. Sem sinceridade, sem riso engasgado, sem turbante. Sem escada, sem degraus, sem olhar pra frente, sem um de cada vez. Sem conquista, sem chegada, sem volta, sem palavra, sem vestígio, sem tatuagem, sem início, sem vadiagem. Sem postura, sem pintura, sem obra-de-arte. Sem cultura, sem teatro, sem balé, nem pé. Sem pé nem cabeça, nem sentido. Sem desenho pendurado pela casa, sem mistério, sem quase nada. Sem porquê, sem limite, sem máscara, sem maquiagem. Sem cara limpa, sem corpo, sem vontade. Sem perigo, sem sexo, sem coxa, sem apelo. Nem nuca, sem olhos nos olhos, sem perdão, sem resposta, sem outra vez. Sem mistura, sem assombro, sem arte, sem ilusão. Sem tempo, sem piada, sem calma, sem crescimento, sem união nem transformação. Sem Lyon, sem cada um de vocês, sem nós, sem meu, sem eu.

domingo, 13 de outubro de 2013

psiu

Para Diego Asensi


existe um laço entre nós
ele é inegável, forte e maleável
se mexe, se adapta, se modifica
muda de cor, de material e até de sabor

mas mantém uma espécie de essência
do misturar entre eu e você
essência essa já comum a nós dois,
de casa

e flechas de flashs seus me invadem
nessa noite fria
velozes, como pontadas
me impressionando como é de costume
eu tou drogada ou isso é verdade?

respiro, abençoada pelo pôr-do-sol carioca,
de barriga pra cima, olhos fechados, no deck da lagoa
faz um ventinho bom,
solto o ar com calma

e você vem e tira de mim verdades tão grandes
e há tanto ignoradas, enterradas, refugiadas em mim
mesma

- ei, psiu, você
eu venho aqui pra dizer
um obrigada por me guiar

com um empurrãozinho ali e outro acolá