segunda-feira, 17 de junho de 2013

"Água e sabão na nossa nação"




CARTA ABERTA AOS ARTISTAS BRASILEIROS


Como disse Andre Borges Lopes na sua carta que fora publicada no blog do jornalista Luis Nassif e dirigida aos que ainda sabem sonhar, nós há muito havíamos desaprendido a. Temos visto os maiores absurdos acontecerem diante de nós há décadas e o máximo que fazemos é reclamar dos políticos numa mesa de bar, entre uma cerveja e outra. Nos chateamos e depois vamos pro samba, pra praia, pro estádio torcer por nosso time do peito, pro bloco de carnaval e por aí vai. Nossa geração é especialista em jogar as coisas pra baixo do tapete - ou foi especialista nesse defeito até então.

Finalmente, como num último suspiro, parece que 20 centavos podem realmente fazer a diferença. 20 centavos parecem ter - enfim - despertado a nossa revolta, que há tanto tempo estava sendo cutucada com escândalos de corrupção, violência, má administração dos recursos públicos e falta de condições mínimas para que a grande parcela da população do nosso país viva com dignidade. E, apesar de tantas e repetidas cutucadas, a nossa revolta parecia ainda sonolenta. Mesmo com toda a claridade e barulhos estridentes entrando pela janela, nós cismávamos em continuar dormindo, desperdiçando a energia e sonhos típicos da juventude pelo mal da descrença. 

Contudo, temos visto e sentido na pele que ainda há esperança. Ainda há esperança porque onde há vontade de mudar, há possibilidade de. Depois da nossa geração ter crescido restringindo as nossas (já poucas) reclamações às conversas entre amigos e a manifestações na internet que se limitavam a compartilhar fotos e palavras de efeito, parece que, como num clique, colocamos a cabeça pra funcionar e, finalmente, decidimos pensar, criar, trocar idéias e, já com a bagagem cheia de sonhos, demandas e esperança, ir às ruas para exigir nada mais do que o mínimo que merecemos, nada mais do que o mínimo de tudo o que temos direito. O despertador tocou e nós acordamos com tudo, tomados por uma inquietação e revolta tardias. Mas antes tarde do que nunca, não é mesmo?

A questão é que não tem sido fácil. As manifestações estão sendo violentamente reprimidas. O que ganham os manifestantes que tem caminhado, juntos, pedindo nada além de uma arrumação decente pra esse país já há tanto tempo maltratado, no qual os políticos, em sua grande maioria, se preocupam muito mais em vender a idéia de um país do futuro - vide os rios de dinheiro gastos com obras para a Copa e as Olimpíadas - do que em realmente colocar a mão na massa para combater a miséria, a desigualdade social gritante e a falta de oportunidades que assolam tantos e tantos brasileiros? O que tem ganhado esses manifestantes? Bombas de lacrimogênio arremessadas entre os gritos totalmente pacíficos que clamam pelo direito de nos expressarmos nas ruas "sem violência!"; balas de borracha nos olhos de repórteres, jornalistas e fotógrafos; prisões completamente absurdas com a alegação de que os manifestantes estão cometendo o crime de formação de quadrilha. E aquela tal de liberdade de expressão, o que é isso mesmo? Só um mero detalhe da democracia a qual dissemos por aí ter alcançado, não é? Um mero detalhe que pode ser ignorado sempre que convém. Mas não, dessa vez não. Cansamos. 

A truculência policial está aí para nos mostrar que realmente é hora. Pra nos mostrar quão frágil é a nossa democracia. Pra nos mostrar que a nossa revolta não pode mais ficar adormecida, que precisamos de uma limpeza geral na nossa nação e que não podemos mais nos esconder por trás do nosso individualismo e colocar a culpa "do nosso país não ir pra frente" nos políticos que nós mesmo elegemos a cada eleição. Tudo o que temos, há anos, acompanhado sentados em nossos sofás, certamente dói em todos nós, ainda que em alguns mais diretamente e em outros menos, mas a nossa revolta, enfim, foi acordada por um aumento de 20 centavos - revolta essa que, claramente, não é fundada apenas nisso. Chega a ser engraçado o discurso de quem nos ataca com essa alegação, afinal quem dera o nosso único motivo para revolta fosse o aumento de preço do transporte público, não é? O importante é que agora sabemos que onde quer que estejamos, podemos sim ser mais fortes, basta acreditarmos e sermos uníssonos: um só som, um só coração, uma só nação. Precisamos fazer tudo que podemos fazer e nem sabíamos. 

Para essa luta verde e amarela, eu convido os nossos artistas, tão importantes historicamente em nossas lutas sociais. André Malraux, um escritor francês, disse uma vez que "a cultura, sob todas as formas de arte, de amor e de pensamento, através dos séculos, capacitou o homem a ser menos escravizado" e, é justamente com essa visão, que convidamos vocês, tão influentes sobre nós e sobre todos que possuem sangue brasileiro correndo nas veias, a se manifestarem e a ajudarem o nosso povo a ser menos escravizado! Precisamos, de uma vez por todas, lutar contra essa classe política incapaz de fazer a única coisa que precisa fazer: nos representar. E precisamos de vocês. Caetano Veloso, Chico Buarque, Wagner Moura, Gabriel O Pensador, Gilberto Gil, Ferreira Gullar, João Cabral de Melo Neto, Falcão, Veríssimo, TODOS, precisamos de suas vozes no nosso coro por um novo Brasil!


quarta-feira, 12 de junho de 2013

A cada encontro, uma epifania

Para Diego Asensi


Hoje, em mais uma das nossas inexplicáveis conversas, você me atentou pro meu costume de preferir deixar na estrutura do vazio as coisas mais importantes de serem ditas. Esse toque em nada tinha a ver com a nossa relação, mas me fez pensar em tudo o que eu já pensei tantas vezes em te dizer e decidi não verbalizar por achar que o silêncio já dissesse por mim. Acho que tenho a mania de pensar que o silêncio muitas vezes diz mais do que as palavras e, apesar de eu adorar escrever, eu penso que essas nem sempre conseguem fazer jus a tudo que o ser que fala quer exprimir. Nossos sentimentos e nós mesmos vamos e somos muito além delas. O curioso é que, ainda assim, elas me libertam de uma forma única, quase mágica; é como se eu renascesse depois de cada sensação que eu verbalizo. Nasce uma nova Gabrielle.

Diante dessa consciência do poder libertador das palavras e da sua brilhante - como sempre - percepção sobre mim e sobre as minhas tendências, resolvi dessa vez pôr a estrutura do vazio abaixo e te narrar (quase) tudo (d)o que você é pra mim - ou até onde as minhas palavras puderem te mostrar.


Essa noite tivemos mais uma conversa incrivelmente reveladora e, dessa vez, em poucas horas. Só com você eu tenho tamanha troca. É como se você fosse um desdobramento de mim e eu, de você. Dizemos meias palavras e o outro já entende todos os sentimentos que estão assolando o coração do que fala.

Há mais ou menos um ano atrás, quando você entrou na minha vida, eu não podia imaginar a baita transformação que estava prestes a me acontecer - e que foi, em grande parte, causada por você. A ironia disso tudo é que você é meu primo - de 3o grau, mas é - e nós sempre soubemos quem o outro era e ouvíamos notícias ocasionais do outro pelos nossos parentes. Frequentávamos até mesmo os aniversários do outro quando crianças, mas sempre sem muita interação. Já crescidos, acabamos no mesmo curso, na mesma faculdade, comigo 2 anos abaixo de você e nos esbarrando vez ou outra pelos corredores cinzas daquele prédio. Acabamos com os mesmos sentimentos sobre o curso, cada vez mais decepcionados e perdidos. Mas disso e do que realmente importava, ainda não sabíamos nada a respeito do outro. Pra mim, você era só um primo distante e inteligentíssimo, como dizia toda a família.


Me perdoe pelo clichê, mas se é que existe destino, eu tenho certeza que a nossa aproximação estava destinada e, em pouco tempo, essa sensação tomou conta de nós dois e nos fez criar laços indestrutíveis em poucas semanas, em poucos meses. E minha vida ia acontecendo nos momentos com e sem você, mas era só quando a gente se encontrava que eu realizava tudo o que estava se passando. Você me abriu os olhos pra todos os aspectos da minha vida, você me escutou e me fez querer falar coisas que eu nem sabia que eu sentia. A cada encontro, uma epifania.


E foi ainda na primeira noite que saímos juntos que você plantou uma sementinha na minha cabeça com a pergunta "mas você não vai fazer intercâmbio? Como assim? Sempre pensei que você iria." A partir daí, você se utilizou do seu incrível dom de convencimento pra me mostrar "que eu era interessante demais pra não me dar esse presente". Eu refutava, não achava que eu realmente viria. E aí então você me mostrou que era viável financeiramente sem pedir nada pro meu pai.


Acho que não passou nem uma semana entre o dia que você começou a tentar me convencer e o dia que eu acordei completamente convencida e saí espalhando a notícia por aí. Comecei a me mexer e ver tudo o que eu precisava fazer para ir pra França no semestre seguinte - e aqui estou eu!


Se esse fosse o único ponto sobre o qual você me influenciou, já teria sido muita coisa. Mas não ficou por aí.


Você me libertou das amarras que o meu entorno e eu mesma colocamos em mim. Você me fez duvidar de todas as minhas crenças, me fez repensar as minhas amizades, as minhas relações familiares, os mecanismos de defesa que eu aciono quando me envolvo amorosamente com alguém e a minha profissão. Você me fez pensar por mim mesma depois de tanto tempo engolida por pressões, obrigações, rótulos e sensos comuns burros. E me fez pensar pra discordar de você em tantas daquelas nossas conversas que duravam ás vezes 6, 7 horas no chão da minha sala, já com o dia amanhecendo. A gente terminava cansados e não porque o assunto tinha acabado, mas porque a cabeça já tava doendo, já era demais, "semana que vem a gente continua". Eram como sessões de terapia onde não existiam psicólogo e paciente; os dois faziam ambos os papéis. E eram muito bem feitos, diga-se de passagem. E, não por acaso, foi numa dessas que eu e você percebemos que talvez esse fosse o meu caminho; que o meu papel de terapeuta não deveria ficar restrito aos amigos e que isso poderia me fazer feliz. E não é que ainda acho que estávamos certos? Vim pra França, peguei alguns cursos de psicologia, comprei alguns bons livros e li outros tantos bons textos. E só me encanto mais e mais. E já não cogito não fazer a minha segunda faculdade - dessa vez, uma escolha muito mais madura e que passou por muita reflexão.

Eu fecho os olhos e me vem a imagem de nós dois, como irmãos, no deck da lagoa. Eu vomitando sensações e pensamentos que eu não fazia nem idéia que eram parte de mim. Coisas que eu nunca acessaria se você não tivesse me feito acessar. E, tudo isso, naquele cenário, com aquelas estrelas me abençoando no meio do meu total desconhecimento de como pensar e agir diante de todos aqueles sentimentos novos que de novos não tinham nada. A grande novidade era eu me deparar com eles e abraçá-los; recebê-los como parte de mim e refletir, enfim, sobre isso tudo. 


Todos nós, até o mais seguro dos homens, passamos por momentos de hesitação e de dúvidas de todos os tamanhos e naturezas. E acho que as pessoas normalmente tem a sorte de ter alguns anjos da guarda que as empurram pra fazer o que elas tem que fazer, mas que não conseguiriam enxergar sozinhas a necessidade de. No meu caso, acho que todos os meus "empurradores" estão concentrados em você, simplesmente a pessoa que eu mais admiro e escuto - talvez por ser o único que realmente fala a mesma língua que eu. E é por isso que eu tenho tanto a te agradecer. 


Obrigada por insistir pra eu levar o tecido pra lagoa e fazer o que eu tanto gosto não só nas aulas, mas também em quintas à toa ou domingos chuvosos. Obrigada por sugerir que eu escrevesse e, assim, ter me feito tantas vezes acessar a mim mesma em um nível muito mais profundo. Obrigada por me dizer tantas vezes que você acredita que eu tenho talentos que a minha autocrítica e a minha insegurança nunca permitiriam que se desenvolvessem sem o seu incentivo. Obrigada por martelar que eu falasse certas coisas que deveria há muito tempo falar pra certas pessoas. Obrigada por me fazer enxergar o quanto eu precisava desse tempo fora e ter me apresentado isso exatamente no momento em que eu mais precisei. Obrigada por me fazer abandonar o celular no meu ápice de stress e passar o dia inteiro livre das melindres e chatices alheias, coisa que eu nunca conseguiria ter feito sozinha - é que eu sou virginiana, você sabe. Obrigada por ter me feito criar limites nos meus tantos relacionamentos de mão-única e ter me mostrado que individualismo é muito diferente de egoísmo.


Obrigada por possibilitar esse encontro meu comigo mesma, em todos os níveis, e ter me dado o empurrãozinho - na verdade, empurrãozão - que faltava pra que eu me transformasse definitivamente numa mulher. Sem você nada do que eu sou hoje teria sido possível porque eu tinha esquecido que eu tinha pernas pra andar por mim mesma no meu próprio caminho que nem eu nem você conhecemos, mas que eu vou encontrar. Obrigada por ter me ajudado a alcançar essa certeza, ainda que o céu pela frente tenha uma nuvem ou outra deixando o futuro meio nublado e incerto. Obrigada por me mostrar que não existe um caminho certo, que não existe um comportamento certo, que não existem cardápios fechados na nossa vida; que podemos apagar e escrever diariamente os nossos projetos, nos reinventar e nos redescobrir e que só assim é que a gente se descobre e se conhece de verdade. Obrigada por ter procurado e encontrado o controle da minha vida por aí, perdido, e por tê-lo me dado de presente, comme cadeau, embalado com papel machê e tudo.


Em tempos - e em terras! - que quase ninguém se olha nos olhos e realmente entende um ao outro (e se interessa por), me vi quase que forçada a agradecer àquele com quem eu mais troquei e mais me fez crescer. Obrigada por ter percebido as minhas crenças bobas e as minhas descrenças mais bobas ainda, os meus medos e inseguranças tão óbvios, mas que mais ninguém enxergava e tudo mais que me paralisava e, diante disso, ter gasto um pouco (na verdade, bastante) da sua energia comigo, insistindo.


Te agradeço, enfim, por ter me ensinado tudo o que me ensinou e por ser e ter sido muito mais que um primo: um irmão, um pai, uma mãe e um amigo.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Ciclo



Aqui em Lyon, eu moro numa residência universitária que fica num bairro bem, bem alto, perto da igreja de Fourvière que pode ser vista em qualquer canto da cidade por estar no topo da colina - impressionante como colina dá uma idéia diferente da idéia de morro para nós brasileiros, né?

Bem, moro aqui nessa residência há 5 meses e essas são minhas últimas semanas por aqui. Como partirei em breve, decidi que esse mês (junho) eu não pagaria o transporte da cidade e faria tudo a pé (ou de bike). É claro que o fato do excesso de pães deliciosos e doces melhores ainda estar realmente me engordando contribuiu um pouco pra essa decisão (nem tão) repentina. Enfim, a questão é que essa idéia tem se mostrado realmente ótima. Como já estou de férias, passo o dia inteiro andando sem pressa. Meus amigos aqui ou são brasileiros ou já aceitaram meu jeito brasileiro e nem se importam mais com meu atraso. Como não moro num lugar tão central - e sou enrolada que dói -, demoro um bocado pra chegar em cada programa que eu combino. Mas eu chego. E ainda chego tendo aproveitado de uma boa andada na cidade com o tempo agradabilíssimo que FINALEMENT (só o caps lock pra demostrar o quanto esse clima foi esperado...) chegou por aqui. Além disso, tou dando um jeito nos quilinhos a mais e na flacidez prematura que uma jovem de 22 anos que sempre gostou de praticar exercício não deveria enfrentar.

Bom, esse é o plano de fundo pra introduzí-los nas minhas últimas semanas de passeios intermináveis pela cidade que chegam a 18 km de caminhada por dia (conferi no google maps orgulhosa de ter saído do sedentarismo). Nesse cenário de calmaria e sincera devoção à Lyon foi que eu voltei pra casa hoje. E as voltas são ainda mais calmas porque são subidas. "Devagar e sempre" é o meu lema.

Essa noite, eu fui numa soirée à la française com uns amigos estrangeiros, bebi um vinho ou outro, joguei um papo furado, me deparei com algumas coisas que amo nos franceses e com outras muitas que detesto neles e, por isso e pelo relógio que já marcava lá pelas 4h30, peguei minha bolsa, me despedi de todo mundo e comecei mais uma caminhada. De onde eu tava, seriam uns 45, 50 minutos. Mole, mole.

Passei pelo centro, atravessei um dos rios da cidade (o Saône), fui passeando por Vieux Lyon dando umas espiadas na Fouvière lá em cima da colina e toda iluminada. E eu ia revezando entre uma postura calma e contemplativa e uma postura serelepe que arrisca até mesmo uns passinhos de dança pelas ruas pouco iluminadas e vazias. Nessa madrugada, por exemplo, eu tava com aquela música do Chico na cabeça, "quem te viu, quem te vê", e comecei a subir a ladeira que liga Vieux Lyon a Saint Just (bairro bem próximo de onde eu moro) cantarolando a tal da música.

"Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala / Você era a favorita onde eu era mestre-sala / Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua / Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua / Hoje o samba saiu, láláláiá, procurando você / Quem te viu, quem te vê / Quem não a conhece não pode mais ver pra crer / Quem jamais esquece não pode reconhecer"

E eu ria por dentro pelo prazer imenso de fazer aquele caminho tão gostoso e fui me lembrando que esse caminho nem sempre foi assim pra mim. A primeira vez que subi a tal da ladeirona sozinha foi porque eu não tinha outra opção. Já era tarde, não tinha mais transporte e eu não tinha dinheiro pro taxi. Vi no celular o caminho pra subir e fiz um mapinha nas costas de uma notinha da épicerie. Era inverno, frio da porra, eu com 2 semanas de cidade, toda indefesa e encasada, desacostumada e despreparada praquele frio, praquela solidão, praquilo tudo. E fingindo estar preparadíssima pra tudo, como sempre. Forte por fora e a mais indefesa de todas por dentro. Nevava bastante. Era difícil subir, escorregava. Eu achava a ladeira íngreme demais, uma verdadeira missão e simplesmente não via nada de agradável em subir a pé. Tinha medo de cada curva. Imaginava possíveis atos de violência a cada instante, super alerta - sou brasileira, né? Assassinos e estupradores saindo de trás dos carros, surgindo nas ruas escuras e por aí vai. "Tem alguma coisa errada", eu pensava. "Como um lugar tão deserto pode ser seguro?", me perguntava encucada. Achava muito suspeita a calmaria da cidade e andava com os olhos arregalados, atenta a tudo.

Repassando tais lembranças, percebi que até chegar aqui tracei um bonito caminho com essa cidade tão viva e linda. Um caminho que vai ficar eternizado pra mim nessa ladeira já tão querida.

É que, aos poucos, o inverno foi dando uma sossegada e a temperatura já não era negativa e ficava ali pelos 0 ou 5°. E isso já melhora muito, é sério. Passei a ter menos medo das subidas e a pisar com a sola do pé nessa cidade incrível. Nada de ponta do pé, viva o contato! Nessa época então, lá pra março, passei a conseguir ver a beleza de cada prédiozinho e cantinho desse meu caminho de volta pra casa. As janelas que mostravam salas em meia-luz já não me deixavam mais apreensiva, agora eu queria é saber sobre cada pessoa que morava por aquele meu caminho que já passava a ser tão habitual... A desconfiança foi indo embora e dando lugar às queridas curiosidade e criatividade. 

No fim dessa mesma ladeirona, tem uma escada. Depois dessa escada, já é Saint Just e, a partir daí, faltam em torno de 10 min até a minha residência. A tal da escada, depois de tantas subidas e descidas, já virou um referencial pra mim, é o meu lugar por aqui. Quantas Gabrielles diferentes já desceram e subiram aquelas escadas? Quanta transformação ela acompanhou? De quanta vida ela foi testemunha? Essas percepções ficaram tão claras de repente que quase se materializam diante dos meus olhos.

Portanto, desde o primeiro mês eu viajava vislumbrando todas essas possíveis mudanças que ocorreriam - e ocorreram, um pouquinho mais pra direita ou pra esquerda do que o que eu imaginava, mas ocorreram - e adotei a escada como meu símbolo. Aí eu disse pra mim mesma que quando eu estiver indo embora de Lyon eu vou voltar na tal da escada e ficar uma boa meia hora sentada tentando repassar essa enxurrada de informações do último ano. E ficarei então só vendo o tempo passar e as coisas se transformarem. Com ou sem a minha interferência.

O ponto é que assim como o meu olhar para com esse caminhozinho foi se alterando conforme o tempo passava, tantos outros olhares estão por aí em constante mudança nada menos que o tempo todo. E hoje esse meu caminho já me enche de amor e me sinto como se eu subisse derretendo, passo a passo, e deixando meu líquido pelo chão; parte de mim; pedaço; carne. É que eu sinto que não sou só eu que mudo a cada vez que passo pelo caminho, ele muda comigo. A cada vez. Assim como mudou hoje quando aquele garotinho de 4 anos dos cabelos loiro-ovo passou por lá pela primeira vez com o avô, descendo bem devagar, observando tudo, de mãos dadas com o seu velho, sem pressa. O menininho é sensível o suficiente pra saber que avô não se apressa. Ele tem isso muito claro na mente "pai e mãe, tudo bem, mas avós são velhinhos e a gente não apressa".

Se eu me concentro durante a subida, eu quase sinto esse passeio do avô e do netinho. O amor ficou no caminho e eu quase posso absorvê-lo; ele faz cócegas nos meus poros.

Engraçado como as coisas, lugares e gente viram lar pra gente de pouquinho em pouquinho. No começo, nada aqui tinha gosto de lar, de meu, de casa. Era simplesmente um alojamento; uma faculdade com matérias interessantes, mas vazia; pessoas bonitas e inteligentes, mas com quem eu não me conectava, como se cada um falasse uma língua diferente e incompreensível para os demais. E eu perdida nesse meio. Aos poucos a vizinhança fica com cara, cheiro e gosto de lar. O quarto já vira "meu cantinho". Aos poucos, você vai adquirindo lugares preferidos na cidade. As pessoas passam a te conhecer e você já tem uma coleção enorme de rostos e sorrisos familiares. E uma hora você já é gostado, já é querido, e as coisas começam a fluir melhor, com mais leveza e naturalidade. O quebra-cabeça vai se encaixando sozinho, parece mágica.

E até parece que só a cidade que te mudou, né. Até parece que os lugares que você foi te mudaram, que as pessoas que você esbarrou pelo caminho te mudaram e acrescentaram um bocado daqui e dali, que o que você viveu ficou pra você e pronto. Mas não é bem assim. A gente não transforma só as pessoas com quem a gente convive, a gente transforma também os lugares, o tempo, os olhares. Saímos deixando nossas marcas por aí pelo mundo, o tempo todo. Em cada um dos prédios dessa cidade, por exemplo, muita gente atuou, tem muita história. Quem construiu, quem morou, quem olhou, quem fotografou, quem visitou, quem passeou, quem reformou, quem, quem, quem. São milhares de quems que deixaram um pedacinho de si naquele prédio. Aquele prédio que foi um hoje e amanhã já será outro. É tudo vida, vida, vida; e a mudança não pára. E assim acontece também com as praças da cidade, com os palcos de shows, com a beira do rio, com os parques e com as escadas (especialmente com aquela). Isso porque as cidades existem pras pessoas, não existes sós; elas carregam com elas um pedaço de cada um, numa mudança constante.

E, nesse contexto, temos eu, uma pequenina peça oriunda do nosso enorme Brasil, que tem como língua materna o português carioca e que sente nas veias as raízes gritando, em coro. E essa pecinha tá aqui, aberta, transformando e sendo transformada a cada caminhozinho por Lyon; caminhozinho que eu percorro com a cadência única dos meus passos, com o gingado que arrisca um samba no meio da ladeira às 5h da manhã, com o sorriso por dentro que se reflete nos olhos e com o respirar fundo que dá tempo pro ar encher meus pulmões não só de ar, mas também de vida.