sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

gosto de fruta mordida


mal faz dois dias que não te vejo
e o vazio já se instaurou dentro de casa

como disse cazuza,
aquele amor com gosto de fruta mordida

a cama tá fria, a despeito de todos os edredons que eu coloque em cima dela

o problema é dentro

é que o seu olhar afável e os seus pés entrelaçados mantêm meu coração quente

l'amour est ridicule, je sais
mais c'est aussi la meilleure chose du monde

sábado, 6 de dezembro de 2014

À bientôt, Lyon



E tudo terminou comigo nesse avião me dando conta que essa experiência me transformou para sempre. A princípio, hoje foi um dia comum, comigo jogando o jogo da vida no modo “hard”. Ontem eu havia me despedido de Lyon e de alguns bons amigos; passeei pela cidade à noite voltando pra casa pela última vez. Passei pelos pontos principais, os quais eu tantas vezes freqüentei. E as lembranças me trouxeram paz. E saudades, essa palavrinha que não pode ser exatamente traduzida pro francês. Só a gente que entende. As saudades futuras já estavam desenfreadamente se instalando no meu peito. Resolvi respirar fundo, dar a mão para o João, um dos queridos amigos que eu tive o prazer de fazer pelo caminho, e continuar adiante. Chegando em casa, o Theo, um francês que surgiu como meu aluno de português, mas logo virou um parceiro, foi me visitar para se despedir. Conversamos um pouco sobre o que eu estava sentindo; ou melhor, sobre o que eu não estava nem conseguindo sentir, eu mal acreditava que ia voltar. Ele me contou um pouco da volta dele do Togo, onde ele morou por um ano. Falou sobre como a readaptação foi difícil. Olhou nos meus olhos. Riu. O rosto dele estava cansado, pois ele não dormia há dias por causa do trabalho. Eu também não dormia há dias, mas porque não podia acreditar que estava realmente acabando... Meu ano na França acabou.

Ele acabou dormindo lá em casa: apagou rapidinho. Eu, nem tanto. Devo ter dormido 2 ou 3h. Acordei com o despertador dele e impaciente para acabar de arrumar as coisas e me ver livre disso. Mas antes uma coisa: Desci e fui pegar uma encomenda que eu tinha feito pela internet com alguns presentes (pro meu irmão, pra minha tia e pra uma grande amiga). Eram uns quadrinhos de uma pintora. Eu havia pedido na segunda-feira passada, dia 16, e antes de pagar eu liguei pro site pra perguntar em quantos dias encomenda ia chegar, pois sei que Murphy tem uma atração inegável por mim e quis evitar problemas. Me disseram 2 ou 3 dias, o que significa que chegaria 4ª ou 5ª feira. Mas hoje é segunda-feira de novo e a encomenda ainda não tinha chegado. Não pude acreditar. Eu iria voltar pro Brasil sem presentes pro Natal e ainda teria que arrumar alguém pra ir pegar a encomenda e levar pro Brasil em seguida.

Resolvi respirar, eu não podia me estressar. Fui no mercado e comprei um espumante pra abrir amanhã com a família. Depois passei no “Paul”, a boulangerie que fica perto lá de casa, e comprei meus últimos croissant e pain au chocolat desse meu ano à la française. Levei um pain au chocolat pro meu coloc, Aymeric, porque sei que ele gosta muito. Ele sempre tentava – e conseguia, já que eu não sei dizer não – roubar uns de mim.

Então, continuei a arrumar o meu quarto. Consegui me livrar das tralhas da mesa, tirei as fotos da parede e a poeira do chão. Joguei fora também aquele espelho que eu e alguns amigos achamos na rua uns meses antes e resolvemos levar pra casa, mas que quebrou no caminho porque 2 desses amigos tiveram a brilhante idéia de deixar o espelho na cesta da velov enquanto os 2 dividiam a bike. Lembrei desse grupo querido, que está no Rio e que devo encontrar em breve. Que coisa doida.

Depois disso, o Aymeric me disse que achava que não poderia me acompanhar à Gare Part-Dieu, a estação de trem onde eu pegaria o TGV pro Charles de Gaulle, já que o meu avião sairia de Paris. O motivo é que ele estava esperando uma ligação da ex-namorada que foi morar na Austrália. Nem acreditei. Eu ia embora depois de morar 6 meses com ele e tinha 2 malas de mais de 30kg cada e uma mochila com mais uns 10. Respirei mais uma vez e disse que não tinha problema.
Voltei pro quarto e escrevi uma carta pra ele. Nesse momento, relevei todos os aspectos negativos da coloc e fui muito carinhosa, como me é de costume. Escrevi também pro meu outro coloc, Guillaume, dessa vez um pouco menos intensa.

Arrumei as minhas coisas e fui me despedir. Deixei com ele ainda um resto de haxixe que eu encontrei no meu quarto e uma lixeira do Che Guevara, que eu havia herdado de outra amiga uns meses antes. Ele olhou a quantidade de malas e perguntou se eu tinha certeza que não precisava de ajuda. Eu disse que não. Meu orgulho, maldito, não me deixou aceitar. Já estava magoada por ele ter deixado de me acompanhar por causa de uma ligação que poderia muito bem ter sido feita depois. O problema da mala era o de menos.

Ele me ajudou a colocar as malas no elevador, eu entreguei a carta e dei um abraço apertado. Chorei um bocado, mas achei que seria pior. Entreguei a chave do nosso apt e a porta do elevador se fechou escondendo aquele sorriso simpático e acolhedor desse francês tão querido com quem eu pude dividir alguns muitos bons momentos.

Em seguida, o drama começou. Tirar as malas do elevador já foi bem difícil, mas chegar até o ponto do bonde (tram) me parecia impossível. Num momento que eu já estava sem forças, escutei aquela pergunta mágica tão difícil de se escutar em terras francesas: “Est-ce que je peux vous aider?”. Agradeci muito e o cara e o seu pai se ocuparam das minhas malas até o ponto do tram, me deixando só com a mochila. Pegamos o tram juntos. Eles iriam até a Guillotière e eu continuaria até a Part-Dieu torcendo pra ter sorte por lá também. Nesse meio tempo, me falaram que eram da Colômbia e eu disse que estava voltando hoje para o Brasil. Eles já moram em Lyon há 3 anos. Eu disse que tive um ano incrível por ali e mencionei também que a minha avó não sabe que eu to voltando pro natal. Eles se animaram com a minha animação. Sorriram. Me desejaram uma boa viagem e saíram pela porta do tram. Eu fiquei olhando para as minhas malas, pensativa, pensando na influência das pessoas sobre a cidade e vice-e-versa.

Logo, cheguei à estação. Estava bem cheia e eu mal conseguia passar com as malas, tinha que parar o tempo todo e já estava um pouco estressada. Conferi a plataforma do trem e já fui me dirigindo pra ela. Subi as escadas rolantes segurando as malas e olhando a part-dieu, por onde eu passei por incontáveis vezes. Me veio à lembrança quando eu me despedi do Tomás por essas plataformas, um dos grandes personagens desse ano pra mim, um dentre os tantos amigos brasileiros que descobri por essas terras. Foi no início de agosto. Percebo como a minha noção de tempo está cada vez se afastando mais do tempo cronológico. Eu não só escrevo em tempo psicológico, como sinto e vivo nesse tempo. E, ao mesmo tempo que parece que agosto voou e que na verdade isso tudo aconteceu há um mês atrás, consigo ver tudo que eu construí de agosto até agora, superando as minhas próprias expectativas, uma vez que, acompanhando a partida de vários amigos meus, acreditei também que eu já não construiria mais muita coisa.

O trem chegou e com muita dificuldade eu consegui subir as 4 escadinhas com as 2 malas, mas eu não achava espaço pra elas. Acabei enfiando a mochila num cantinho e deixando as malas no meio das passagens, uma na passagem à direita de onde eu tava sentada e a outra, à esquerda. Sentei com calma, finalmente. Na minha frente, estava um jovem da île de la réunion que mora no Canadá. Aproveitei pra gastar mais um pouquinho do meu francês antes de partir. Ele falou que adorava música brasileira e ele realmente conhecia bastante coisa. Recomendei outros cantores que ele não conhecia e escutamos algumas do meu ipod. Conversamos e rimos um pouco. Ele também estava indo para o Charles de Gaulle. Pedi ajuda na saída, pois eu não tinha muito tempo pra tirar as malas e cada uma tava num canto. Ele se prontificou em me ajudar, mas eu não conseguia passar para o lado oposto que ele foi porque o corredor tava lotado. Saí então pelo mesmo lado, tiramos uma das malas e entrei no trem novamente pela outra porta para recuperar a mochila e a outra mala imensa. O trem tava quase saindo, já que continuaria até Lille, e as pessoas que estavam entrando estavam super impacientes comigo, mas falando alto e os empurrando um bocado eu consegui sair do trem milisegundos antes das portas se fecharem e o meu recém-amigo estava me esperando com a minha outra mala do lado de fora. Achamos um carrinho pras malas, subimos o elevador, trocamos emails e nos separamos porque eu precisava ir pra outro terminal. Mas, antes disso, tiramos uma foto juntos para ficar na memória.

Eu que achava que com o carrinho já tinham acabado os meus problemas percebi que ele não poderia passar para o outro terminal, então foi mais um perrenguezinho chegar até ele. Chegando lá, quis pegar o tax free, mas a fila tava enorme e eu ia ter que esperar no mínimo uma hora. Coloquei na balança e o dinheiro que eu receberia não pesou tanto. Então, fui pesar minhas malas. 1ª: 40,5 kg. 2ª: 35 kg. Mala de mão: 10 kg. Putain.

Eu tinha direito a 2 bagagens de 32 kg, mas como me livrar de mais de 10 kg? Abri as malas e comecei a jogar fora tudo que eu não fazia questão. Tênis e bota que já estavam em estado de petição de miséria e, pela peneira da minha mãe, já era pra eu ter jogado fora há muito tempo. Papéis, papéis, papéis.

Tirei uns 4 casacos pra vestir, enxutei uns 16 livros na minha bolsa (não na bagagem de mão, na bolsa mesmo) e todo o resto na minha bagagem de mão, a qual eu esperava que não me pesassem. Resultado: primeira mala com 31,8, segunda mala com 31,7 e eu com 5 casacos e cachecol num calor da porra – apesar do inverno de fora, no aeroporto tava bem quente. Minhas costas começaram a doer, mas tomei coragem e fui despachar as minhas malas. De cara, pediram pra pesar a bagagem de mão. Descobri que, a princípio, eu tinha direito a 5 kg e que eu tava com 15. A moça me pediu pra me livrar de algumas coisas pra alcançarmos 10, que aí ela deixaria passar. Eu tirei o computador e a câmera e deixei num saco separado. Vesti mais um casaco e pesei de novo. Ainda 12kg. Eu disse que ia vestir tudo e ela teve pena. Eu disse que depois de um ano é bem difícil respeitar esses limites de peso. Ela foi gente boa e deixou passar, mas quand même tava super difícil andar com aquele peso todo. Depois ela ainda quis me dizer que eu tinha direito a 23kg, mas isso só se você compra a passagem da Europa. Se você compra ida e volta do Brasil, também tem direito a 2 de 32 na volta. Ela ligou para alguém para confirmar que era realmente a minha volta porque a minha reserva estava zuada desde o meu vôo de ida por culpa da incompetência da empresa onde ela trabalha, mas isso é uma história pra depois – embora tenha acontecido no começo (eu já disse que o meu tempo é psicológico). Consegui me livrar das bagagens grandes e fiquei sofrendo com a menor, a bolsa com uns 5kg ou mais, lotada de livros, e o saco com o computador e a câmera. Foi uma pena eu não ter despachado mais uns quilinhos. Embarquei, passei pela polícia, tive que tirar tudo da mala e recolocar de novo e cheguei, enfim, ao portão de embarque número 16. Faltava 1h. Sentei com as minhas companheiras malas e fiquei falando com alguns amigos e com a minha mãe pelo whatsapp. É amanhã que vou vê-los. Amanhã. Depois de um ano.

Entrei no avião, achei um lugar lá na frente pra minha mochila e deixei todo o resto aqui no chão comigo, do lado dos meus pés. O sono do dia inteiro foi embora. Dei à bientôt aos meus amigos quando eu ia decolar e desliguei o celular. Comecei a ver uns filmes. Primeiro comecei a ver um do Woddy Allen, mas depois percebi que eu queria uma comédia bem bobinha, era o momento. Achei uma comédia romântica idiota e assisti. Depois vi um filme (Stuck in Love) sobre uma família em um ano complicado pra cada um dos personagens. Terminei o filme chorando horrores, já nem sabia porque. Não foi pelo filme. Foi porque acabou. Não tinha nada a ver com o filme.

Fui ao banheiro e tentei secar minhas lágrimas, mas elas insistiram em continuar caindo. Voltei pro meu assento e o cara a 2 poltronas de mim perguntou se eu tava bem. Eu respondi que sim, mesmo ele tendo percebido que not at all. Lyon me manque déjà.

Peguei o computador e comecei a escrever tudo que me viesse à cabeça. E agora eu to pensando: como explicar o que foi esse ano pra mim? Como passar pro papel tudo isso?

Tudo começou quando eu peguei o vôo de ida. Não, começou muito antes. Começou quando o meu primo me convenceu a fazer intercâmbio. Ou ainda quando eu comecei a estudar francês. Ou ainda quando eu, desde pequena, dizia o quanto eu queria aprender francês e ir pra Paris. Ou ainda quando meus pais escolheram o meu nome, o único nome feminino com o qual acordaram: Gabrielle. Avec 2 L.

Não importa o que exatamente determinou que eu viesse pra França. Tudo determinou, as coisas não são assim divisíveis como parecem, é tudo influência e o passado ainda ta na gente, latente, assumindo outra forma a cada dia, se adaptando às nossas mudanças conforme elas apareçam.

O que importa é que eu não estava feliz, muito pelo contrário. E encontrei nessa cidade, nessa experiência muito mais do que eu jamais pensei que poderia.

Pude escutar o meu coração, sentir meu sangue circular pelo meu corpo, sentir cada pedacinho latejar. Permaneci imóvel. E, diante de todas essas sensações que eu me permiti sentir, pude perceber que, por vezes, as palavras não são suficientes. Respirei, me acalmei e decidi deixar o texto interminado. Não toquei mais nele e aqui ele está, como registro oficial de tudo o que eu pude colocar em palavras durante o vôo.

Je pense que c'est ça. Donc, à bientôt, Lyon.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Une lettre

À Aymeric et Guillaume



"Salut, des colocs!

Je pense que j'ai déjà essayé de vous expliquer ce que "saudade" veut dire, mais c'est vraiment un mot intraduisible. Quand même, c'est ce que je sens après 4 mois au Brésil. Saudade, beaucoup.
Donc, je pense que ça vaut la peine d'essayer une deuxième fois.
Le mot "saudade" exprime une mélancolie empreinte de nostalgie, sans l'aspect maladif.
Dans la nostalgie, il y a un sentiment mêlé de joie et de tristesse, un souvenir du bonheur, mais aussi la mélancolie d'une existence unique dans le passé et d'un retour en arrière impossible.
Autrement, la saudade exprime un désir intense, pour quelque chose que l'on aime et que l'on a perdu, mais qui pourrait revenir dans un avenir incertain.

Donc... Ce que je voulais vous dire est que j'ai saudades de notre coloc, de chaque moment qu'on a vécu ensembre. J'espère que tout va bien pour vous, du fond de mon coeur.

Je vous embrasse fort.

Des bisous brésiliens,
Gabi"

Un cri d'amour





Ainda sem entender, peguei o tram pela última vez em direção à Part Dieu. Com as malas de 1 ano inteiro, entrei no T1 com muita dificuldade. Apesar dos 80 quilos que eu estava carregando nas 2 malas e de mais uns 10 na mochila que estava nas minhas costas, o mais difícil mesmo era digerir que eu estava me despedindo de você, Lyon. Quem me conhece sabe que o taxi nem era uma opção, nananinanão. Cheguei no perrengue e vou embora nele. 70 euros de taxi? Preferi suar um pouquinho pra esquentar um pouco o meu coração que gelava tanto nesse momento. Já no tram, eu evitava até mesmo piscar pra guardar tudo de você que eu pudesse, por uma última vez, olhando através das janelas. E passamos por Perrache e eu me lembrei da primeira vez que eu pisei por aqui. Não sabia nem a direção da tal da residência onde eu fui morar. Insegura com a língua, desacostumada com o frio, me sentindo pequenininha. Muita coisa mudou, né Lyon? Agora eu conheço os nomes das suas ruas como a palma da minha mão. Tenho uma história pra contar em cada cantinho seu. Que saudades eu vou sentir... Foi bom. Bom demais.

Avisto a Place Carnot já com os olhos cheios d'água e a gente atravessa o Rhône. Vejo ao longe a Avenue Berthelot, que abriga a SciencesPo e o Comoedia, meu cinema preferido da cidade. Seguro as malas bem forte e o choro, mais ainda. Aí entramos na Rua de l'Université e me lembro das vezes que eu cheguei correndo pra aula de dança de manhã cedinho. No calor, era fácil, mas, conforme foi esfriando, ficava cada vez mais difícil me levantar da cama. Logo, a Rue de Marseille me derruba. Uns grandes amigos moravam por lá e perdi a conta de quantos bons momentos tive por ali. "Calma", eu digo pra mim mesma me policiando. "Também vai ser bom voltar", repito ininterruptamente enquanto respiro fundo e com vagar. Rue Montesquieu, casa da Mari, uma das minhas melhores amigas dessa experiência. Guillotière, quantas histórias. João, Patrick, Levy, Magno. Nessa altura do campeonato, já desisti de segurar as lágrimas. Mas não soluço, choro aquele choro emocionado no qual elas caem silenciosamente, choro de saudades antecipadas. Logo, logo, a Part Dieu vai chegar. Me concentro nas minhas coisas, vejo se está tudo em seu devido lugar. Enxugo os olhos. Uma senhora esbarra em mim sem querer e diz:

- Escussez-moi, Mademoiselle.
- C'est pas grave, Madame.

Meus olhos enchem d'água novamente. Eu sorrio pra ela e ela me sorri de volta.

Chegou. Salto com muita dificuldade com as minhas 2 malas e com a mochila nas costas, uns 100 quilos ao todo. Corro pra chegar com tranquilidade na plataforma. Quantos rostos, quantas malas, nunca vi a Part Dieu tão lotada. Isso que dá voltar pra casa pro Natal, pelo visto todo mundo está fazendo o mesmo por aqui. Só que eu, ao contrário desses nacionais, vou pra Paris pra pegar um vôo pro Brasil. Sim, pro Brasil, hoje mesmo. Amanhã piso em terras verdes e amarelas novamente. 

A muito custo, entrei no trem. Lotado, tive que deixar uma mala em cada vão que fica entre os vagões. A mochila e a sacola extra levei comigo e coloquei acima do assento. Deixei à mão vários cadernos pra escrever tudo que estava se passando pela minha cabeça confusa naquele instante. Lyon, ma belle Lyon, c'est pas possible que nous soyons finies. 

O trem começa a andar e eu respiro bem fundo. Aí o meu vizinho de assento começa a puxar assunto. Perguntou o que me aflingia. Eu tentei resumir todas as emoções que tomavam conta de mim enquanto eu as narrava. Ele sentiu tudo junto.


Com um sorriso simples e atencioso, dividiu um pouco da sua história comigo também. Vivia no Canadá, longe da família. Sentia muita falta deles. Estava na França para visitar a irmã e acabou aproveitando para conhecer Lyon. Adorou a cidade, não poderia ser diferente. Estava no trem indo para Paris para, afinal, encontrar a irmã, depois de muitos anos sem vê-la. Ela já estava casada e ele tinha 2 sobrinhos que só conhecia por skype. Dava pra ver o quanto ele estava ansioso pelo reencontro.

Ele tinha um francês engraçado. Não entendo muito de sotaques, talvez fosse um sotaque do Canadá, je sais pas. 

Ele disse adorar samba e até arriscou uns nomes: Gilberto Gil, Chico Buarque, Martinho da Vila. Achei curiosa a sensação. Engraçada. Esquentou o meu coração lembrar desses cantores, lembrar do samba, lembrar de todas as vezes que saí para dançar e voltei às 5h da manhã acabada. Foi bom, pensei que no Rio a vida poderia me sorrir também. Bastava que eu me esforçasse para olhá-la com ternura e sorrisse à ela primeiro.


Depois de muito papo e recomendações musicais, chegamos em Paris. Eu estava nervosa, pois tinha 3 malas super pesadas e sacolas espalhadas para tudo que é braço. Precisava tirar tudo do trem muito rapidamente, a despeito da fila e da antipatia de certos franceses, uma vez que este iria continuar a sua rota para outras cidades. Acho que o ponto final era em Lille, se eu não estou enganada.

O meu amigo recém-conhecido me ajudou no sufoco: sem ele, talvez eu tivesse perdido alguma das malas, afinal o povo francês, regra geral, não facilita na empatia e paciência.

Em seguida, nós nos despedimos e fui para o terminal 2 despachar as malas de uma vez. Quase não tive tempo para digerir o au revoir, pois pesei as malas e vi que uma estava com 40 kg e a outra, com 36. Precisava deixar as duas com 32 cada, então tratei de selecionar o que dali eu iria vestir, jogar fora ou entulhar na mala de mão. Em meio à missão, arrumei uns espectadores para me assistir, não sei se torcendo por mim ou apenas se divertindo com a minha angústia. Não muito tempo depois, enfim, bati os 32 kg nas duas malas e me dirigi para o check-in.

Após conversar com a atendente e convencê-la a me deixar embarcar com uma mala de mão com 11 kg, uma bolsa atarracada de coisas e um saco extra com computador, câmera e mais alguns muitos livros pra contar história, agora eu só tinha que esperar o vôo.

Anestesiada, vaguei pelo Charles de Gaulle como quem não toca os pés no chão. Eu nem estava ali naquele momento, não entendia bem o que se passava. Sobre essa parte, mal posso relatar lembranças, pois me falta consciência do que senti. 

Algumas horas depois, entrei no vôo toda carregada e, felizmente, encontrei alguns brasileiros simpáticos que me ajudaram a guardar parte das minhas tralhas no bagageiro. Sentei no assento com o resto delas, tratei de tomar o meu segundo rivotril para conter a ansiedade que se lançava e se espalhava pelo meu corpo e fiquei olhando pela janela esperando o avião decolar. Do meu lado, a mulher e o homem que dividiam comigo a fileira da direita não paravam de falar um segundo. A minha dor de cabeça, já latente há uma semana, ganhava força a cada risada histérica da minha colega de vôo. Para piorar, o meu medo de avião começou a se instalar, de peu en peu

E, então, decolamos. Apesar do medo, fiz questão de olhar pela janela para registrar em imagens o fim do meu ano na França, dans ce beau pays.

No entanto, as lágrimas me invadiram de forma descontrolada. Soluçando, abri o computador e comecei a esccrever: páginas e páginas, sem ordem, aparentemente sem nexo, embora todas absolutamente necessárias. Era isso ou um grito interminável: optei por digitá-lo.

Me parece que, quase um ano depois desse dia marcante, o grito ainda não se acabou por completo. A cada vez que eu toco nesses fragmentos palavreados de você, ma belle Lyon, alguma coisa dói muito lá no fundo e, por vezes, ainda me sobram lágrimas para permitir que você entre um pouco mais em mim, poro por poro, agora por meio das lembranças que eu carrego comigo de cada uma de suas estações.

Acontece, ma chérie, que as palavras, embora quase sempre me sejam libertadoras, nunca me soam suficientes para você. Elles sont pas sufies.

Ainda assim, hoje eu precisei gritar por meio delas: era isso ou multa condominial e polícia na porta. Danos contidos, meus vizinhos agradecem.