terça-feira, 11 de setembro de 2018

Tempo, espaço e arrepio


"Alice: Quanto tempo dura o eterno?
Coelho: Às vezes, apenas um segundo."
(Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll)

Ela, afoita, vive correndo de um lado pro outro. E eu, recorro ao recurso da utilização da terceira pessoa em vez da primeira porque, por vezes, tenho necessidade de me afastar de mim mesma para historicizar as invasões que o mundo imprime em minha carne. Do contrário, eu as perco. Elas se vão, escorrendo pelos ralos da cidade, dos apartamentos; escorrendo pelas paredes e pelas fachadas bonitas e feias, renovadas e abandonadas; se esvaem pelos rios e mares, ou simplesmente evaporam nos céus; ou, ainda, tornam-se poeira, graxa, petróleo, mausoléu. É urgente que eu não perca as inscrições, não de novo, não mais uma vez. Eu, que sempre deixo tudo passar; que, a despeito de tanto sentir, tanto sofrer, mantenho-me inerte tantas vezes: deitada, apática, sem encontrar meios de me mexer. Me mexer para onde?, essa é a pergunta de fundo que me atormenta e me mantém apagada, em cima do muro. Canso-me de meus impasses. Há momentos que os resolvo num triz e vejo com tal força: enxergo e sinto desde naves cintilantes, a amores incandescentes; vejo e sinto a magia transparente por detrás de palavras que me dizem tanto. Me vem um desejo louco de escrever e inscrever toda a experiência em um folha, em uma árvore qualquer, em um corpo alheio, para que essas ainda-não-palavras não morram comigo, em mim, ocas; inférteis, infrutíferas. E eu as deixo ir. Eu as nego. Não crio condições mínimas para elas nascerem. Vivo abortando palavras: eu, a negligente criadora. Palavracida, essa sou eu; uma assassina de palavras embrionárias. Penso que não tenho condições de as tê-las, de as parir. Boba que sou, nem percebo tantas vezes que o parto nunca é feito totalmente pela mãe; o bebê também precisa querer nascer. Se é tirado à força, sem atmosfera possível, se não é convencido de que vale a pena viver, que sua vida é possível para além da sobrevivência, o bebê escolhe morrer. Precário demais para o mundo.

Como manter-se e fazer-se constantemente sublime? Como fazer uso de seu espaço corporal e expandi-lo? Como não cair no funcionamento da fuga de si mesmo e permitir que nasçam flores de você? É isso que ela, que vive correndo afoita, se questiona, dia após dia. A qualificam de inquieta, de indócil, de insubmissa, de desassossegada. Que desassossego é esse que nos toma? O que a inquietude expressa, afinal de contas?

Viver correndo de um lado para o outro, sem saber ao certo aonde se quer chegar com tais corridas, cada vez mais velozes. Assim como o velho coelho da Alice: nervosamente indeciso, constantemente atrasado, oprimido pelo tempo. Antítese da menina, ele é esvaziado de vigor, potência e determinação, mas surge ao longo da história como motor que a faz seguir seu rumo. Sem um mínimo encontro com a opressora organização da cronologia, Alice se perde no tempo e no espaço e se esparrama de vez, tornando-se desforme.

A consistência temporal e espacial depende de alguma historicização. Mas o coelho nos mostra que a cronologia como único recurso nos escraviza. Se vivermos olhando para esse relógio, o corpo vira máquina para dar conta da performance exigida pelos imperativos discursivos que se apoderam desse corpo. O corpo entra em estado de sítio, em modo de emergência, e passa a ter como único propósito a manutenção da sobrevivência. Sobreviver é subsistir em situação de precariedade extrema, em terreno ou de acordo com regras inadequadas, inviáveis à vida fértil; após uma grande perda, após um choque, resta a nós a sobrevivência. O trauma instaura um modo automático de sobrevida, de vida sub-humana. O sujeito se torna um coelho branco, correndo infinitamente sem chegar a lugar nenhum.

E a Alice sem a sua antítese, o Coelho? Alice está entregue às suas sensações corporais, às suas pequenas percepções. As percepções são o início de qualquer história. Primeiro, vem-nos a sede pela escrita de algo. Em seguida, fantasiamos cenas, sons, paladares, tatos , cheiros... partículas várias que se mostram a nós cada uma à sua forma e no seu tempo e textura. A partir daí, buscamos recursos para contar essas histórias. Recursos linguísticos, sonoros, gestuais, geométricos... recursos possíveis. Contamos a nossa história em cada suspiro, em cada olhar, em cada refletir. Ao refletir, refletimos diante de um outro que pode, enfim, nos enxergar a partir de sua ótica, de seus poros, de seu tempo e textura.

Para tanto, é preciso parar um pouco. Suspender o tempo cronológico, expandir o espaço, torcer as fronteiras do possível, alargar o que me fora garantido por um outrem. A Alice não sabe quem é e, por não saber, expande suas fronteiras identitárias, seu tamanho físico, seu tempo hábil, criando fantasias e, com elas, realidade.

Como conjugar o tempo cronológico com o tempo de kairós, um tempo qualitativo, um tempo da experiência do momento oportuno? O Coelho e a Alice nos propõem essa reflexão. Cada um de nós encontramos (ou não) os meios de conjugar esses dois tempos, paralelos e inescapáveis à fruição da vida.

Nos ensina Alice que só podemos alcançar o impossível se acreditarmos que é possível. Cocteau concorda dizendo: "Não sabendo que era impossível, foi lá e fez".

Alargar o tempo e o espaço. Deixar o corpo crescer, diminuir, conforme a música pedir. Seguir o som, deixá-lo entrar nos poros. Instaurar um som no mundo, um som que mexa estruturas, um som que desafie condutas novas, um som que arrepie alguém.

A sobrevivência é um engodo, um castigo, uma mortificação: um fazer-se podre em vida. Diferentemente, podemos expandir a vida e incitar torções no aparelho mundano. Abandonar as roupas usadas, nos termos de Pessoa. Abandonar os velhos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares: à correria, à sobrevida, à penitência, ao desperdício.

Ser arrepiado pelo mundo e arrepiá-lo de volta: é para isso que estamos aqui. 



terça-feira, 14 de agosto de 2018

engatinhando em solo fértil



de flor em flor,
você me povoa de cores e texturas
e preenche essa floresta de espécies várias

a gente se encontra no meio das plantas
e se ama ali mesmo

e o mundo todo pára, os sons congelam
aqui dentro, volto-me inteira para você

você cura devagarinho
minhas antigas feridas,
beijando uma a uma,
pas pressée

nas cicatrizes,
você planta e rega novas flores
e eu descubro que o amor pode não doer

- eu sei que amor não se agradece, mas obrigada; obrigada porque seu amor me emociona em tal grau no tanto que ele embeleza essa floresta que eu simplesmente parei de me desmatar. 

você, destituído


não sou um filme pornô,
nem me interessam os seus desejos
de me objetificar
de tudo que é ângulo, de tudo que é canto,
travestindo-me de lolita e me dispondo
para você penetrar meus buracos e mente
se apossando do meu desamparo e apelo
e chamando tudo de amor;

minhas partes íntimas não estão à sua disposição
e todas as minhas partes são íntimas
e o que tem dentro também,
radicalmente íntimas

minha voz também é íntima,
privada, própria, pessoal;
e não quero mais me dirigir a você,
você escutou bem?

encontrei um martelo pelo chão
e estou destruindo cada partícula dessa ponte perversa
que me ligava a você

não encoste em mim, não quero ouvir um pio seu;
espero que tenha aprendido algo dessa história inteira
que, para ser inteira, tomou-me tanto:
tantos pe-
da-
ços;
que me deixou em carcaças, queimada, em carne viva
às custas dos seus caprichos,
da sua imagem,
da sua punheta

e você chamou de amor
mesmo eu dizendo que doía

hoje, sei que o amor não é você
sei que não é tudo sobre você,
hoje, não giro em torno de você
e sei que eu não vim ao mundo para te agradar
para que você, grato, me desse um lugar
ainda que esse lugar doesse
e não tivesse a minha cara
e fosse inóspito
e que nele eu tivesse que temer o tempo todo
o seu abandono
a sua desistência
o seu julgamento
a sua ira
e suas mãos ajeitando o meu decote
ou as suas falas dizendo que eu não podia isso ou aquilo
repletas de máscaras de carinho
"por preocupação"

"o que é meu, é seu; é nosso",
e você anunciava a proteção
de uma segurança claustrofóbica e terrorista;
os termos mentirosos de um contrato leonino
que regia os usos do meu corpo
cheio de letrinhas miúdas
e eu, míope que sou,
confiei cegamente
que aquele papel falava de amor

não,
o que é seu não é meu,
como eu sempre te disse;
e o contrário também se aplica:
o corpo é meu, as regras são minhas
e isso não é só um ditado pra você repetir
esquerdomachamente nos carnavais pela cidade;
e as invasões não mais serão toleradas

o que é seu não é meu,
e eu não começo onde você termina
eu vou além, me esparramo
em dimensão independente,
desconectada,
em plano outro,
em pele e matéria estranhas a você

você não dita minhas linhas,
meus limites,
meus gostos,
meus possíveis;
você não é minha fronteira
e não determina minha jurisdição
nas minhas terras;
pra falar a verdade,
você nem conhece minhas terras
e não tem visto para visitá-las;

você não dita mais nada
e eu nem faço mais ditado,
já sei muito bem escrever

já não choro mais na cama
ao seu lado, enquanto você dorme
e ronca e sonha
plenamente confortável
com a dor que me infringiu

assim como você,
aprendi a dormir confortavelmente
e não te apelo mais nada
(a não ser silêncio,
o único gesto de respeito
que eu exijo de você)

eu funciono apesar de você.

- eu não temo mais você.

vampiros

as ruas e espaços públicos estão repletos de bocas abertas
cheias de dentes que furam julgando
e julgam furando
tirando o seu sangue
te deixando anêmica
para que,
comparativamente,
esses sujeitos pareçam vigorosos
cheios de saúde,
ao sujeitarem você

escute-me,
sanguessugas e vampiros estão por toda a parte
e o sangue que eles usurpam de seu corpo 
alimenta as suas próprias neuroses

evite andar em seus guetos
ao encontrá-los, sorria
e diga não, gentilmente
evite o desgaste

como diz o meu analista,
"escolha as suas guerras",
jamais se venceu uma batalha
com frentes infinitas

há lugares por aí
onde nosso esforço reverberra
onde nós podemos existir
onde não nos fazem anêmicas,
pálidas, fracas

há espaços por aí repleto de seres
que não fetichizam nossa palidez,
que querem-nos transbordantes,
criativas,
móveis,
aquáticas

lembre-se:
fuja das pragas
voe, nade, ande,
e não deixe ninguém te parar

quinta-feira, 5 de julho de 2018

salto




bem quis que nos tivéssemos inteiros
sem nem piscarmos
prendendo o ar debaixo d'água

e haja fôlego para tanto,
pra sustentar pra mim mesma 
que poderíamos ser
o oxigênio um do outro

faltava ar todo o tempo,
o tempo todo;
os olhos ardiam,
eu me asfixiava

mas você se dizia feliz,
em sua melhor forma e fase;
enquanto eu via só via apatia

tentei ser paciente
busquei falhas em mim
escavei cavernas interiores
fundas, escuras, densas,
proféticas

encontrei tantas sombras
me perdi nessas sombras
pensando ser eu
toda a falha do mundo
e pensando sermos nós
toda a minha raiz
pensando sermos nós
toda a minha luz
(se e é que eu tinha alguma)

nós, a lanterna que guiava essas buscas profundas
nós, o espaço seguro ?
nós, a certeza

- mas certeza de quê?, eu me perguntava
e te perguntava em sequência

você me dizia: - de tudo, do que quiseres, basta escolher e eu vou atrás

passávamos diante de vitrines de lojas
baratas ou chiques,
enormes ou pequeninas
e, ao primeiro olhar meu,
você me dizia:
- você quer, linda ? eu te dou.

mas não era isso que eu queria
não é o que eu quero
e eu nunca estive à venda

em seguida, vinha-me aquela sensação,
a de queda livre

imersa numa solidão profunda
dentro da caverna escura do meu eu
e a lanterna queimou

eu berrava, pedindo ajuda
você vinha, mas não me via
nunca me encontrou nesses labirintos macabros
nunca entendeu as minhas trevas

pensava ser drama
e usava essa palavra
pra diminuir o que eu sentia
pra calar a minha boca

eu, que olhava pra dentro
e via infinitas feridas e garras
dores e maldades
recolhia-me mais e mais
e constatava mais uma vez
ser eu todo o mal

eu brigava e me debatia
numa guerra comigo mesma
a qual eu te permitia observar
como mero expectador,
voyeur de uma cena de luxúria
feita sob medida
especialmente para você

porque partícipe cê nunca foi;
diferentemente,
cê me deixou aos leões
e acreditava salvar-me deles
(ou seja, de mim mesma)
com uma penca de notas de reais
que de reais não têm nada
são apenas ficção de poder

assim como o poder que você tinha sobre mim:
ficcional

e a ficção é coisa à beça, eu sei
tanto sei que me faço exprimir
por essas palavras
até hoje

pego os meus restos
resquícios dessa história inacabada em mim
e busco encaixar em palavras

palavras as quais eu não gosto
me são amargas
indigestas
me trazem enjôo;
enjôo e dor

quando me percebo,
minha testa está enrugada
e eu pareço ter envelhido 5, 7 anos
em apenas 1
quase uma j.k.

minha cabeça toda dói
meu corpo está desforme
e eu não me refiro à estética da coisa,
quero dizer energeticamente desforme
não conheço-me minhas funções

meus destinos foram desequilibrados demais
chega a noite e, sozinha, sinto-me uma ameba
fracassada,
uma coitada;
sinto-me triste
e duvido de todas as minhas escolhas

me dá vontade de sair porta afora
correr, gritar
arrancar as roupas, me arranhar
e ir mergulhar na praia
depois de correr a lagoa inteira
para lá chegar

e quem sabe em seguida
me afogar nas águas de um mar abalado por uma ressaca tremenda
quem sabe ?

ou então eu poderia
sair correndo
pegar os poucos putos no bolso que eu tenho
comprar uma passagem pra puta que ainda não pariu
e ir viajar, apenas com documentos e roupa do corpo,
com a puta que eu sou
e de repente parir alguma coisa em algum canto novo,
mais fértil do que a infertilidade que se apossa de mim hoje,
parir um suspiro, uma história,
um rasgão nesse roteiro de merda
insosso, contaminado
tóxico até dizer chega
que ficou essa minha vida
depois que eu me dei conta
que nem eu te tinha
e nem você me tinha
e que nenhum de nós era oxigênio pra ninguém
e que nesse tempo todo eu tava respirando por aparelhos,
toda entubada

quero arrancar essas merdas de tubos
deixar tudo pelo chão
nesse hospital todo branco que me dói a cabeça
que me cega

e se for pra sangrar, eu sangro
adoro vermelho, não vejo problemas

se for pra morrer, também
todo mundo morre

a morte é bobagem,
coisa pouca
previsível e, quando chega, indolor
c'est fini, c'est tout

a vida é quem arranca a nossa pele
e cria outra por cima
queimadura em cima de queimadura

a carne viva é estado de alerta
onde a gente sente tudo
o gosto da pedra,
o cheiro do amor
o tato da noite
o som do espaço aéreo
e avistamos a solidão

arrebatados pelas sinestesias das tonalidades várias
de vida e morte,
sentimos medo

diante dele, por vezes nos anestesiamos
diminuindo-nos
comprimindo nossos pedaços, órgãos, agenciamentos
enquanto secam as nossas artérias

por outras vezes, saltamos
sabendo que o chão nos espera
mas, no ar, fazemos graça
rimos, criamos, gozamos
e perdoamos toda aquela merda de crença
que nos entubou por completo

danem-se os tubos
a louca está à solta
avisem os seguranças
para desistirem

não trabalhamos com contenção de danos
a vida é rabiscar, quebrar, deixar marca nos muros,
nas ruas, palacetes,
e corpos por aí afora

louca, solta, eu desliguei os aparelhos
e nem você nem ninguém
nenhum eu interno
vai me impedir de dançar



quinta-feira, 17 de maio de 2018

a outra

e se todas nós nos encontrassemos
e sentassemos numa mesa de bar p conversa
seria engraçadissimo
e incômodo
e afetuoso, talvez
pois como somos radical-
mente
diferentes;

outro dia entrei num bar
e vi uma menina sentada
mulher feita
cheia de mistérios

me demorei observando-a
encantada e encafifada pelos seus suspiros
e de repente
levei um susto

percebi 
que ela era eu
um eu possível, um eu futuro 

com o choque,
despedacei-me e colei-me 
em seguida
largando uns restos pelo caminho
e no processo
tornei-me 

saí do bar outra
a outra que sou

Rascunho de um luto inacabado

Um luto perdido e interrompido por aí

Você chegou para ocupar espaço. Desde a primeira vez que eu te vi, é só isso que você faz: ocupa meus buracos, meus pensamentos, minha casa. E eu estou de mudança agora. Procurando outro apartamento, me desfazendo dos papéis acumulados com o tempo, das roupas que não uso mais e das pessoas que me mantém sempre atrás de onde eu poderia ir. Você é o exemplo perfeito disso.

Rascunho de um caderno antigo (2)


Eu leio você sozinha, mais sozinha do que nunca. É tudo uma via de mão única, comigo alimentando o esquentar do peito again and again, encore et encore. Estou cansada. Me vem um gosto amargo na garganta, que sobe devagar até a boca. Que eu te vomite logo, eu penso; e meu corpo agradece.

Rascunho vienense


Tem alguma coisa nessa cidade que me puxa pra cá. Já é a segunda vez. Tou indo embora e sinto essa pressão de um mundo de possibilidades que eu tenho pra viver nesse lugar se diluindo. O trem começa a andar e constato uma atração magnética muito, muito forte. Viena invade meus poros dizendo, em coro, "fica".


Rascunho de um caderno antigo


Seus olhos evitaram os meus, como já é de costume entre nós dois. Mas o seu corpo me aceitou bem e me respondeu com amor. Em cada pequeno gesto, um pouco do que ficou.

Seu gosto já não é mais o mesmo, ficou claro que muita coisa mudou. Mas por baixo do toque, da barba e cabelos; por trás desse nosso olhar fugitivo que tanto evita o outro e de todas aquelas palavras não ditas, ainda tem você. E ainda tem eu.

Não encontramos nenhum nós, parece que o ele se perdeu, evaporou. Já até começamos a duvidar se um dia ele realmente existiu... Será mesmo? Mas eu avisto claramente, com aquela nitidez mil, um pouco do que poderia ter sido - e não foi.

Nessa fragilidade da vida, onde tudo se esparrama pelo chão num piscar e as possibilidades vão escorrendo pelos dedos ainda que fechemos as mãos com força, pois elas vão encontrando as brechas; os átomos se dividem, se adaptam; e passam, viajam, deslizam. E o que era não é mais. O que podia ser, idém. Já não pode mais.

Mas sempre fica alguma coisa no ar, naquela risada conhecida, com som de lar. Fica na barba embaraçada que arranhou outrora a minha pele - sensível que só ela, mas que adorava isso. Fica nos gestos confusos por insegurança e desejo - quase encabulados, mas intensos como nunca. Fica nos nossos olhares fugitivos que só confirmam que, realmente, muita coisa ficou. Cravada, tatuada, entre você e eu.

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Onde não existe tempo

Entrei no plano da eternidade sem tempo
Como se o tempo tivesse subitamente se convertido
em algo infinito;
Como se eu tivesse perdido num instante,
de um segundo para outro,
a capacidade temporal
Não há mais passado, presente
ou futuro
O que existe é a quebra disso tudo,
a grande dor que me faz fazer coisas,
atuar, me mexer,
correr para qualquer direção;
me machucar, me exaurir, me punir,
me furtar:
qualquer dispêndio me interessa.

Procuro mentiras sinceras,
incessantemente
E elas estão por todo lado
Mas o problema sou eu,
que não acredito nelas
Nem por um segundo as permito como moldes
Nem por um segundo eterno
Ai, que bom seria, me abraçar a algo,
confiar que algo existe

Mato-me para não morrer
Para não perder o resquício de tudo o que já foi
Pago com o corpo, e pago caro

Deito entre os defuntos
Para ser poupada
Mas o terrorismo se mantém
Porque eu bem sei
Que ainda tenho a perder
Apesar de já me doer toda
Antes mesmo disso

Aqui onde não existe tempo
E o passado, o presente e o futuro coexistem
Aqui onde não se faz história
Onde não se conta nada
Onde eu não sei o que sinto
Onde pareço sentir tudo
Onde penso que perdi tanto
Sem nem saber o que ou para que
Servia
Sem entender a falta que isto que eu não conheço
(ou que não dou conta de representar)
me faz

Me dizem "pois doía"
Agora acabou, se supõe
Contam-me coisas estranhas
Palavras voam, correm
Por vezes, gritam

Meu corpo esfarela na cama
Minha atenção se esfarela quando leio
E onde moram os farelos? O que fazer com eles?

Parece-me que seria preciso juntar farelos, criar um corpo
Com que vigor? Com que pretexto?
Por onde começar? O que justifica?

Nego a realidade.
Até quando?
Será que em algum tempo ela não será
tão penosa?
Algo do qual eu precise tanto fugir?

Canso-me de ser louca
Canso-me de não reagir
de outra forma

Canso-me das minhas formas
Na verdade, sinto-me desforme
Deformada
Esfarelada
Voando aleatória
Piscando e entrando pelos olhos
Sujando os cômodos

Virei poeira aos olhos de
quase todos

Mas uns pingados
Dizem-me outra que não pó sujo

Dizem-me brilhante, vasta,
amor

E eu vejo um pó sujo
Que nem serve para chá
Sendo que nem gosto de chá

Sobrevôo
Espero não atrapalhar
Não grudar pelos cantos
Não furtar vista alheia
E, em algum canto por aí,
Simplesmente
Descansar
(a morte salva)

Carga


Carrego comigo imagens, cheiros, músicas, tardes, sustos, danças, conversas, apelos.

Voltando do trabalho, andando próxima à minha atual rua em direção à minha casa, passo em frente a um restaurante-hamburgueria. Observo-o, espaço bem humilde e, ao olhar para a sua parte interna, me assalta a imagem a pizzaria chinfrim que fomos por falta de opção no nosso último dia em Havana. Os restaurantes já estavam fechados, eu estava super rabugenta, indisposta e com um pouco de medo, eu acho. No fundo, acho que eu sabia em algum lugar que quando voltássemos todas as questões que me assombravam e me enfraqueciam na nossa relação também voltariam e, enfim, numa hora ou noutra, nós iríamos nos diluir.
Eu tinha medo, sentia frio; sentia-me sozinha. Sentimentos esses totalmente paradoxais naquele cenário de calor ardente, suor constante, companhia em tempo integral. Infelizmente, eu já estava cansada de saber que nós queríamos coisas diferentes. Me machuquei esse tempo todo para tentar te agradar, me aproximar, te tocar e, no fundo, o que eu queria mesmo - e sustentava a ilusão de que aconteceria - era te mudar. E isso é uma merda. Mas eu não me dava conta. Queria trocar sacrifícios: mudança por mudança, enquadramento por enquadramento. Que muita gente sobrevive assim, eu sei. Mas eu nunca quis só sobreviver. E hoje eu sei que não é papo de que eu nunca estou satisfeita, como você me dizia. Não é histeria, não se trata disso. Haviam muitas coisas importantes para mim que eu não via em você e vice-e-versa.
Para começar, o amor. Aquele que lava, transforma, movimenta. Éramos muito frágeis, sozinhos e como casal. Eu expunha a fragilidade, você buscava guardá-la a 7 chaves e, se possível, negá-la a maior parte do tempo, tanto quanto você suportasse. Narciso se afoga no espelho, e você?
É impressionante o quanto vivemos com alguém e, depois, para onde vamos? O nós desfaz nosso nó, nosso entrelaçado; a corda se desenlaça e a história vai para onde? Não tem filme, não tem registro o suficiente. Eu não queria esquecer. Queria elaborar até o limite da elaboração, guardar em caixas intocáveis. Não deixar evaporar.

"Ainda bem que a gente teve Cuba".


"Eu acho você uma pessoa genial, eu gosto de conversas com você sobre política, eu respeito as suas opiniões".


"Eu não vivo sem você".
"Nossos filhos serão lindos".
"Você está me matando".
"- Eu não consigo dizer.
- Mas por que? Me diz, estou preocupado.
- Porque eu te amo.
                          (tempo...)
- Você quer se separar?
                          (respiração profunda)
- Quero, quero, quero, quero...
                          (chorando muito)
sensação de loucura, 
de perder o chão,
de quase-morte".

"- Pode falar, eu sei que você me ama (...). Sei porque eu também te amo".

"Você me enganou, é assim que eu sinto. Eu me casei achando que a nossa vida seria uma e ela é outra. Você decidiu isso sozinha, sem me consultar e eu tive que respeitar. Me deixou no barco sozinho". 

"- Faz o seguinte? Nem volta pra casa, eu não quero te ver hoje.
- Você diz: pra casa que também é minha? 
- Se você vier, eu saio."

"Você precisa parar de se colocar em risco. Senão eu não vou namorar com você porque eu me preocupo, eu não vou dormir de preocupação".

"Eu tô cansado, me deixa em paz".

"O sonho dela é fazer uma viagem de trailer".

"Eu não quero fazer esforço, mas eu não quero te perder", diz o narcisista que eu amei.


Dividimos idas ao mercado, beijos em piscinas, mares, banhos, cinemas, camas, boates, igreja. Carrego comigo abraços, risos, apoio, presentes, tretas, brigas, socos na parede, nó na garganta, sexos, fissuras, apego, comemorações, viagens, medo, carinho, cartas e tanto mais.

É tanto que nem cabe. Nunca coube. Você sempre me deixou vazando, nunca pude suportar. 

Lembro do nosso quarto de hotel do casamento, de chegarmos lá depois da festa, de uber, chovendo. Exaustão. Então foi isso? Casados. Você estava feliz, mas parecia atuando um pouco ao mesmo tempo. A festa foi um momento feliz, apesar de estranho. Pareceu um filme. Tudo se encaixava. Entrei no banheiro enjoada e ri de/para mim mesma: "que articuladora de história que eu sou. Fiz um romance da minha vida. Escrevi com meu corpo, minhas horas, minhas lágrimas, minha força e minha sujeição. Corpo encouraçado X vibrátil. Medo constante. 

Eu queria ser a bailarina que você sempre sonhou. Mas eu danço como a louca que eu sou.

Cura

do latim cura = "ato de cuidar"


Ela me ama devagarinho, 
Sem pressa, com presença
Olha, escuta, acaricia
Diz pouco, mas preciso
Me faz flutuar, sair de mim,
vislumbrar mundos impossíveis
até que talvez venham a ser possíveis,
criados pelo nosso amor

Me sinto criando a cada dia,
Sem cartilha, sem certeza,
Cheia de camadas, 
Histórias,
Perdida entre seus cachos, pele, olhos, beijos 
e delicadeza
Vazando, flanando
Púrpura

Queria te escrever em toda a superfície da minha pele
Com símbolos, palavras, danças, músicas
Tatuar você em tudo, te inscrever, marcar minha imagem
Para escancarar o que eu sinto por dentro
Alguém curada pelo seu amor, cuidado, escuta
Tecendo em mim o amor mais puro que há:
A vida vale a pena com você 

O que ficou pelo caminho?



Joguei da janela do 7o andar
Pedaços inteiros repletos de história
Fotografias, móveis, frases e sonhos
Deixei a dor pelo corredor
E, dentro dos armários,
Tímida, oca, sem voz
Fui seguindo, erguendo a cabeça flutuante
Que pairava no ar,
Sem pescoço.
Repito e repito os vestígios de pedaços
Buscando historicizar este tempo sem roteiro,
Esta história que furtei de mim

Pelo caminho, fiquei eu
Aquela em mim amada e odiada
A mãe que eu fui para amim
Ela ficou, no corredor, nos armários e nos cacos
que caíram da janela

E eu, fiquei orfã de mim

Sobre um amor infinito

Nas pequenas coisas, vejo o seu sorriso, seu solhar de olhinhos amendoados me dizendo amor.
Obrigada por me mostrar que o amor pode ser leve, que o amor pode não fazer doer.

É tarde, o relógio diz chega, os compromissos se impõem.
E a gente daria tudo para parar o tempo.

Dormir com você é querer fazer de cada mais 5 minutinhos, mais 5 anos, over and over again.

Sobre ser inteira longe da sua presença

A verdade é que, antes de você, eu jamais havia me sentido inteira. Eu jogava justamente com os meus pedaços, cacos, partículas. Por vezes, sentia essas partículas vibrando e o meu corpo, sábio, reagia à altura em manifestações orgásmicas - os pelos se eriçavam, o sorriso se abria grande sem que houvesse um convite o convocando, as piruetas e as quedas deliciosas aconteciam. Estes instantes aconteceram, e alguns dos eus que me habitam são testemunhas disso. Mas os instantes se faziam nos espaços - e para se ter espaço é preciso não ser, não se entender como completo. Um cômodo completo é um cômodo lotado. Nada nele é encontrado. O corpo anda contraído, esmagado, sem passagem. Apequena-se sob a pena de não caber ali. Apequena-se para não ser obrigado, impelido a mudar-se. Mudar dá trabalho e lá fora não há móveis, não há estrutura. O que há então? Espaço e tudo aquilo que se faz com ele.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

vas-y

era assim
um sonho

só pra mim
eu achei
que cê era
o cara

aquele que veio pra ficar,
aquele que veio pra tudo
mudar

e eu, que era sabiamente aberta
pra você,
me joguei, me joguei, me joguei
etc

me afundei, mergulhei, como andei
caminhei
dias, meses
meses, anos
quanto tempo
e não chegava
e o caminho era seco
por vezes
nem sempre

e você
tava lá
a princípio
pelo menos

cê dizia que cê tá tava
cê fazia uma série
uma série de coisas
sacrifícios
esforços
será?
será?

cê dizia que era amor
e eu não via seu amor
como pode? como é isso?
eu só sentia dor

por vezes
nem sempre
era claro que era amor

eu te via
queria seu bem
de verdade
muito grande
queria seu bem

seu sorriso
seus cabelos entre os meus dedos
em um cafuné
infinito
movimentos circulares
caracol
os meus dedos te amavam tanto, meu bem

cê nem lembra,
eu aposto
cê nem tava encorpado

era isso, o problema
além dos outros vários

desencorpadamente
principalmente
princepemente
era a gente

eu, princesa de meia tigela
não sou princesa
nem quero
nem posso
nem caibo
sou mais
e menos
e torta
e tanto
e má
e gente
e boa
e amo
e sei
discordo
e falo
pra caralho
eu bem sei
que canso
que me canso
que sou chata,
cê num disse?
cê sempre dizia

ai, que chata era eu
ai, que boba
que dramática
que chorona
e por quê?
pra que tanto?
pra que sentir?

joga tudo
bem embaixo
do tapete
cê dizia
era a dica
de ouro
que cê tirava da manga
pros amigos
pras amantes
pra quem cê ama

joga tudo bem debaixo do tapete e vai dormir
meu bem, amanhã cê nem vai sentir
se sentir, faz de novo
e um dia isso não vai mais
existir
isso
isso
essa coisa
criatura
uma fábula
sei lá
qualquer coisa
uns pedaços
umas carnes
a falar

por que falam? pra quem falam?
tem que ouvir ou fingir
pra comer,
não é assim?

é o preço
do sexo

o preço
da carne
daquela
da outra
ela custa
meu esforço
ela custa
meu trabalho
meu fingimento
meu esforço em ouví-la
ou melhor, em fingir

e cê disse
bem no mar
naquele mar mais lindo
naquela ilha incrível
de tão bela
de tão só
de tão minha
vazia
e tão bonita
cê me disse
entre risos
que cê não queria me perder
mas também não queria se mexer

"eu não quero te perder,
mas não quero mudar"

nem sei se isso existe
uma caminhada sem mudanças
bom, nem sei
se existe insistir
em uma ferida que cada vez mais
se aprofunda no outro
e você tá ferindo
como pode ser amor?

eu não sei
cê nem lembra
eu lembro de cada coisinha
de cada massinha
de cada carinho
de cada chorinho
as danças
os gritos
os berros
as promessas
os planos
e o vazio

e ficou
o silêncio
o silêncio com seu eco

eco
eco
ecoa em mim
eu sei
eu sou
eu fui
eu sinto
e cê marcou
dificil apagar
nem quero apagar
mas como conjugar ?
frases desconexas
afetos queimando
uma mulher-menina
eu
carne e osso, carne viva,
em carne viva,
tudo aberto
como dói
o nó do nós
me sidera
queima
como lidar?

cê nem lembra, eu sei
procê é tudo igual
é tudo igual

que pena
que triste
que dor
ai ai

eu berro tanto nos meus sonhos
entre becos
na janela
no banco
na cara das pessoas
e principalmente
de você
mas é claro

é
marcou
é
eu falei
é
casei
é
foi bom
e ruim
e muito
e tanto
e cedo
e tarde
e grande
e pequeno
e todas as ambivalências mais

luz e sombra
lua e sol
frio e fogo
corpo desencorpado
dor, prazer
é
era assim
cê, pra mim

boa vida
segue em frente
e me deixa por aqui
me deixa por aqui

algum dia
eu levanto
mais enérgica

todos vão pensar
"finalmente, essa moça"
levantou
levitou
leu, cantou
depois de tanto mancar
de tanto cair
de tanto rasgar
de tanto se inibir
de tanto de excluir
de tanto se quebrar
de tanto chorar
contar
pensar
cantar
criar
de tanto
foi tanto
é tanto
vas-y

sábado, 10 de março de 2018

Fotografias

Hoje, acordei repleta de saudades de mim. Busquei-me em cores, sons, texturas e ritmos. Encontrei imagens estacionadas em formato de fotografia. Senti-me nessas fotos, revivi momentos, ideias, encontros. Sorri por dentro. Será que será que será que será? De retalhos, montamos e costuramos colchas, redes, histórias, obras. Nos costuramos na pele, como quem continuamente leva pontos (sutura). Abre-se, fere-se, costura-se o coração. Esse, o coração, se localiza em toda a extensão do corpo. Ele pulsa, ele vibra, ele cansa, ele dói. Ameaça se apagar com paralisia e nós buscamos manter alguma chama acesa, mesmo diante da ventania e dos tempos de queimadura que rasga e borbulha a pele. Sob a pena de viver sem fogo, sem calor, numa apatia institucionalizada que muitos simplesmente chamam de vida adulta - ou de vida real. E o que é essa tal da realidade? O que é essa estranha para cada um de nós, subjetivamente? A realidade não é senão como vemos e sentimos o nosso entorno? E quem disse que tem forma definida? Quero dizer: quem em nós nos disse a nós mesmos que o mundo é um só? Que nossa vida é linear, precisa e unívoca? Quem aqui que nunca morou em seus abismos e flertou com a queda livre, entre medo e desejo, em promiscuidade com os seus próprios fantasmas? Quem é que nunca conheceu o sentimento de vertigem de si mesmo? Sem nunca ter sido vertiginoso, sem nunca ter conhecido as areias movediças de seus rastros, o indivíduo não foi marcado. Não virou sujeito. Nasceu assujeitado? Não, não nasceu. Ninguém nasce assujeitado. E o assujeitado de hoje comporta em seu negativo o sujeito, o afeto, a potência, o corpo erotizado. Para além de um corpo-máquina, somos pulsionais. Esse de quem falamos fechou-se, por fim. Como disse Manoel de Barros um dia, e aqui sou eu parafraseando o mesmo, supondo que entendi o que ele escreveu. E não entendi? Será? Absorvi com o corpo, costurei na carne-coração o meu sentido, frágil, fragmentário, flutuante, a-ser-desfeito-e-refeito, tatuagem móvel, oceânica, plástica e quebradiça e, a partir disso, estou aqui a brincar com as palavras, a fazê-las dançar, morder, gritar e sorrir. Escrever amarra, escrever sutura, escrever constrói. E escrever abre, escancara, aponta farsas e hipocrisias que sustentamos para nós próprios. Por medo. E, afinal, medo de quê? Do absurdo, do ridículo, do real, da tola ferida narcísica que dói em todos nós, embora tola. A verdade é que somos todos tragicômicos, risíveis e humorados. Ah, como somos pequenos! Pequenas partículas luminosas-lamparinas-vagalumes. E, como digo a partir da antropofagia que faço com o Manoel (aquele, o de Barros), ingerindo, incorporando e vomitando-o cheio, repleto dos meus restos melosos, grudentos e ambivalentes: assujeitados, nos fechamos do quê? Ao que deixamos de nos expor? O medo nos protege e priva do quê, afinal? Da fraqueza, do desalento, do amor, do poema. 

Mas é do desamparo que nasce a arte,
precária que só ela 
(pois humana, obra de corpos humanos)

Pobres e abençoados pequenos seres
cintilantes, nosotros

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

divórcio

me é cansativo, as imagens não cessam em me visitar: lembranças e planos, quentes, grandiosos, macios e burgueses. sinto-me fraca, sem forças, sem ímpeto o bastante para seguir. eu sei que não dava mais, mas dói demais. o peso da decisão, o amargo da perda causada, infligida.

foi cedo demais? foi tarde demais? e a relação, se deu por que? e o que ficou dela?

são tantos os questionamentos... e todos eles vão de encontro com as certezas vomitadas por nós dois, certezas que nunca haviam existido para mim.

tudo me parece um filme, uma história que alguém me contou. como que pode acabar e eu não reconhecer quem eu fui e quis ser, quem nós fomos e quem você é?

a estranheza de tudo me inquieta e machuca; me sequestra do presente e se denuncia em lágrimas.

alguns podem pensar que as lágrimas vem fora de hora, ou que já deviam ter secado. pode ser que sim. afinal, há tanto lá fora. há tanto dentro de mim.

mas elas não secaram ainda. se dispersam, se espaçam mais a mais. e tudo só fica mais estranho. aleatório? né possível.

acho que não. tem muito de você em mim, ainda que seja pelo oposto, pela revolta, pelo não.

diferentemente, sinto que cê não me via.
e isso é o que mais dói.

como pode?