sábado, 28 de novembro de 2020

Palavras mortas

Sinto-me grávida de palavras mortas. Não as parri a tempo e elas apodreceram dentro de mim e tomam meu corpo e meus espaços como que uma metástase de palavras perdidas. São feitas de tudo aquilo que eu não escrevi e agora virou infecção e entope continuamente os meus poros e artérias, de tudo aquilo que eu necessitava ter parrido nos momentos em que as bolsas d'água estouraram, mas eu retive. Neguei-me a parir e fiquei como que mijada, sentindo-me ínfima e humilhada por mim mesma, tragada pela sedutora onda da depressão que herdei de minha mãe, que me convida a entregar meu corpo á cama,a rarear a minha respiração, a atuar para mim mesma e me enganar e me enfraquecer histericamente, a afundar meus braços e pernas no colchão, a concentrar-me dedicada a todos os pontos de dor do meu corpo, de forma que eles se tornem mais agudos para que eu possa sentí-los me ameaçando a cortar-me por dentro, mais uma vez, rompendo — fácil, fácil como um sopro despretencioso, como um ventinho que leva o chapéu de palha para longe da canga nas areias da praia — com minha última configuração precária de remendo para os pedaços cortados que eu carrego do lado de dentro. 

Por vidas, fui aquela mulher perseguida por um homem agridoce a quem ela seduzia horas antes no balcão do bar. Eu entrava nas noites como quem está atrás de perigo, não sei se buscando convencer-me de que eu realmente não tenho solução, —  de que sou ferrada da cabeça por sempre me meter nos mesmos becos assombrados, logo eu deveria mesmo aceitar ser violada, física e simbolicamente (estruprada, humilhada, silenciada, chamada de louca e dramática, culpabilizada) e, quem sabe, se eu aguentar ser dócil em alguns momentos eu até consiga despertar um pouco de compaixão desse sujeito que me come ora sem me olhar nos olhos ora me fitando e vendo outra que não eu (vendo uma coisa, um objeto, ou vendo uma dama ou uma puta quando essas figuras são meras vestimentas facilmente disponíveis para a uma mulher-atriz lançar mão) — ou se, ao contrário, procurava alguém que fizesse tudo isso comigo para, no final, quase sem querer, me enxergasse ali naquele instante, vislumbrando minhas tempestades e tendo notícias em seu próprio corpo da dor que me corrói por dentro e me faz querer rasgar as roupas que envolvem minha pele e correr pelada pelas ruas por horas a fio, desertas ou não, com ou sem carro, bueiro destampado, beco sem saída ou mar revolto, até alguma tragédia que viesse de fora me acometesse ou até eu não aguentar mais e zerar a minha energia vital a ponto de cair dura no asfalto ou em qualquer outro lugar aonde a loucura pudesse ter me levado. 

A dor era tanta que só mesmo inventando performaces que fizessem menção à ela, como que em sua homenagem: eu, amante da dor, aquela que reconhece o seu valor em minha carne e em tudo o que eu fazia (e em tudo que eu deixava de fazer), sempre a partir dela.  

Por vidas, a dor ditou meus passos e me fez buscar parceiros que me machucassem ainda mais profundamente, adicionamendo novas camadas de dor erotizada à uma mulher jovem e aparentemente cheia de vida, porém masoquista. 

[E essa parte de mim ninguém via].


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(...Continua em algum momento,

pois escrever para mim tem sido como uma quimioterapia para tratar a metástase das palavras perdidas.

Após cada sessão, um período de recuperação).


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o vazio povoado dos amores ausentes que habitam meu corpo vivo que no futuro morrerá


vivo atormentada pela urgência de escrever sobre minhas ausências, cenas do passado se anunciam diante dos meus olhos interiores e sinto-as como se eu fosse feita de pele por todo o meu interior, e os poros dessa pele real, imaginária e simbólica simultaneamente (o psíquico) permite que uma cena chame outra, que chame outra, que chame outra, e tantas estórias ensaiam começos ali diante de mim, pequenina — frases inaugurais chegam a ser decretadas: agora sim, este será o início do livro dos amores que me constituem, que me carregam até o banheiro de manhã para que eu escove os dentes e lave a cara para começar um novo dia estranhamente parecido com o dia de ontem e assim por diante, dez mil novecentos e cinquenta vezes mas tudo isso se passa em uma velocidade tão, mas tão veloz que as cenas que haviam vindo até mim tão nítidas de repente se perdem — e, de novo, já não sei mais contar essa história.

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que amor eu quero honrar se todos eles vieram da mesma semente, da mesma origem e, ao mesmo tempo, cada amor é tão singular e, portanto, os amores são todos absolutamente incomparáveis um com o outro, pois cada um é inteiro e furado dentro de seu próprio destino ? — pois os amores estão sempre entrelaçados, os nossos e os dos outros, os nossos e os que nos antecederam e os que nos sucederão.  

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e digo mais: como contar dos amores se amor é apenas uma das faces da encrenca ? já que todo amor tem como vizinhos do ódio à pena, passando pela compaixão, pela inveja, pelo medo, pela gula, pela calmaria e, logo ali no horizonte, pela indiferença.

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e por que dessa minha mania de tanto querer dizer se eu sei ser a palavra tão limitada, um simples contorno parcial e limitado que morre logo que é declarada ? a palavra, criada por não suportarmos o dizer do silêncio ? — o silêncio, aquele que fica fora do plano das formas dadas, e que fascina porque não representa nada, nem nada o representa, manifestando-se apenas na energia irradiante que dele irrompe.

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disse yves klein: "no coração do vazio, há fogos que queimam" perante o vazio, estou só, de uma solidão que me arranca para fora de mim, uma solidão povoada de presenças ausentes, de amores insuficientes, de sonhos impossíveis, de perdas irremediáveis, de enredos inviáveis.

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me veio uma cena e, dessa vez, escrevo-a — um dia eu li um livro daquelas que machucam e acolhem, daqueles dos quais sinto uma inveja tremenda porque queria demais que tivesse sido eu a autora, mas ao mesmo tempo me reconheço incapaz de realizar uma proeza à altura e, logo em seguida, sinto-me grata pela vida daquele autor e por todos os acasos e destinos que o fizeram escrever aquelas palavras tão urgentes em mim, e sinto-me grata a mim mesma por todas as minhas intercorrências, preguiças, paixões e loucuras que também me levaram a chegar até aquelas páginas e viver aquele aconchego tenebroso de se ler um chamado necessário e transformativo, e sentir a tempestade interna causada pelos desbloqueios que eu pude acionar em mim, transmutando vidas inteiras que vivi, estavam mortas e se decompondo dentro de mim, de repente passam de masmorras assombradas a cinzas cintilantes e tocam em tudo que é vivo nesse instante — nesse caso, as páginas eram de um livro do safatle onde ele reinvidicou que saltar no vazio pode ser o único gesto necessário.  

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a frase e o manifesto que a sucedeu me foi tão intrigante que precisei bolar um projeto de mestrado, entrar no mestrado, cursar o programa e, ao final, escrever uma dissertação de cento e quinze páginas onde eu tentei falar de milhões de coisas e acabei não falando de quase nada (porque é isso que a palavra acaba fazendo com a gente na maioria das vezes, nos colocando em espirais infrutíferas que nos fazem desperdiçar o tempo, simplesmente o tecido de nossas vidas) — mas que cisma louca é essa senão uma tentativa de revisão pressagiada que quer tornar palpável a presença dos que estão para sempre longe demais, muito embora nos sejam tão íntimos ?

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e o que saltar no vazio tem a ver com tudo isso, já que eu digo e me distancio cada vez mais de onde eu quero chegar ? — é preciso estender a função da arte à vida e encarar o vazio e o silêncio para aguçar os sentidos e poder perceber o quanto estamos o tempo inteiro passando da impotência ao impossível, pois o vazio nunca foi nem será inerte: ele é apenas o lugar no qual não encontramos nada, e o impossível é tão-somente um regime de existência de tudo aquilo que não acreditamos poder se apresentar na atual situação em que nos encontramos — e compartilho com vocês aqui a cereja do bolo com a qual o safatle finaliza o capítulo do seu livro (uma frase perfeita que me causa, em primeiro lugar, inveja e, em segundo lugar, gratidão (sentimentos aparentemente muito diferentes, porém também aparentados)): "[o impossível] é o lugar para onde não cansamos de andar, mais de uma vez, quando queremos mudar de situação. Tudo o que realmente amamos foi um dia impossível".

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fico em silêncio, penso se esse texto acabou, se esse texto existe, se é um monte de merda e se eu deveria deletá-lo, penso no emaranhado de palavras que eu estou escrevendo há quarenta minutos ou talvez há uma hora e sinto um arrepio no cóccix que me sinaliza a deixar as palavras em paz, palavras que acenam para todas que eu já fui e para todos que eu carrego em mim, até mesmo em minhas regiões que nem eu mesma alcanço.

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 viver é viver povoado e povoando, sempre prestes a morrer — nada se apaga, tudo se acaba e as ausências nos levam pelas mãos, nos observam à noite insones ou desmaiados de sono, nos convocam a ocupar, inventar, criar e mudar incessantemente, nos obrigam a enxergar a necessidade de tomarmos uma decisão e a tomá-la logo em seguida (ainda que a decisão seja não decidir e perder por w.o.), nos espiam nos primeiros suspiros em cada início de um novo amor que virá ressignificar todos aqueles que nos trouxeram até aqui.

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cada um de nós terá seu próprio fim — até lá, que o impossível nos surpreenda.