quinta-feira, 21 de julho de 2016

Dói à beça



Para todas as mulheres,
 que sentem cotidianamente não só a delícia, 
mas também a dor de sê-las 


Que já conquistamos muito, é verdade. Que entramos no mercado de trabalho, na política (tanto como eleitoras quanto como políticas) e que estamos cada vez mais conscientes do quanto ainda precisamos percorrer, também. Que hoje cada vez mais homens participam das tarefas de casa e da criação dos filhos dentro de um lar, também. Que muitas de nós, cada uma à sua forma, tem passado a criar laços de afeto para com as outras e ultrapassar as barreiras de competitividade, inveja e difamação que nos estimularam a levantar umas contra as outras, também. Que temos buscado viver as nossas sexualidades de maneira cada vez mais livre, também. Que, dentre as mulheres, eu sou cheio de privilégios, também. 

Poderia ficar o texto todo falando das conquistas femininas das últimas décadas, mas esse não é o meu ponto. Em vez disso, queria desabafar sobre o quanto ainda estamos longe de ser livres, respeitadas e vistas como mulheres para além da objetificação que fazem de nós. 

No Brasil, calcula-se que a cada 24 segundos uma mulher é agredida. Enquanto eu estava escrevendo esse texto, seguindo essas estimativas, aproximadamente 40 mulheres foram agredidas. Dentre as que se encontram em situação de violência, 38,72% sofrem agressões diariamente e 33,86%, semanalmente. Por sinal, a violência doméstica é a principal causa de morte e deficiência de mulheres entre 16 e 44 anos de idade - matando mais do que acidentes de trânsito e câncer, por exemplo. Os dados alarmantes continuam e muitas de nós já os sentiu na pele; tantas outras não estão mais aqui para contar história. É por elas e por nós todas que eu escrevo. 

Dói horrores ser abusada. Começa a doer instantes antes, ainda que o nosso corpo por vezes fique anestesiado - é que já tá doendo dentro. Dói durante, quando a gente se dá conta que o outro é incapaz de ver a gente como um igual e acha que a gente tá ali exclusivamente pra ele se satisfazer - e a gente, por falta de espírito de "cooperação", às vezes ainda corta o barato dele chorando e gritando, né? Que egoístas. Dói depois, a cada vez que as lembranças vêm e nos acometem e, por vezes, acabam com o nosso dia, com a nossa semana, se metendo entre os nossos afazeres e obrigações e furando a fila das nossas prioridades, nos aterrorizando. Dói também quando a gente já não sabe mais se lembra dos detalhes do rosto dele e já não tem mais certeza se o reconheceria dentre outros homens que se parecem com ele. Dói ter medo de andar nas ruas da cidade em que vivemos. Dói ter medo de olhares e cantadas que, não, queridos, não são elogios. Dói ainda mais quando percebemos a relação perversa e cruel que inequivocamente existe entre a cultura do estupro e tantos comentários que objetificam as mulheres saindo da boca de tanta gente a todo tempo, inclusive de pessoas que amamos. É, omi, dói à beça.

E, não, homens, vocês não sabem o que é isso, não fazem nem idéia. Sentem-se, escutem e reflitam. Pelas mulheres que vocês amaram, amam e ainda virão a amar, mas não só por elas: também - e talvez principalmente - por aquelas que vocês nem conhecem e que, ainda que conhecessem, não viriam a amar, pois somos todas muito mais do que corpos para os seus bel-prazeres, somos pessoas, somos humanas e não merecemos nada a menos do que muito respeito.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Esse é pra você, finally



Para o meu grande amigo Eoin, quem caminha sempre ao meu lado


Tenho um amigo muito querido que acompanha esse blog desde o início - blog esse que já fez aniversário de 5 anos e continua aqui, aos trancos e barrancos. Na verdade, acho que ele fez bem mais do que acompanhar: foi ele quem me incentivou e talvez tenha sido ele até quem deu a ideia. Volta e meia, ele fala que espera um texto meu sobre e para ele por aqui e, vergonhosamente, este ainda não saiu. Até agora.

Não sei até que ponto ele sabe de todo o bem que já me fez: cada comentário cuidadosamente escrito, cada fala de encorajamento, cada escuta delicada de tantas fases e impressões minhas. É também por ele que eu não deleto os textos antigos que, quando releio, já não sei mais se gosto - e até mesmo aqueles que eu sei que já não gosto mais. Junto a cada um desses, há um (ou vários) comentários desse meu amigo, que leu todas as palavras desse blog - e muitas vezes por mais de uma vez.

É evidente pra mim - e espero que para ele - que a nossa amizade vai muito além disso, mas o recorte da história desse blog diz muito sobre nós dois: cada um com sua vida, medos e desejos, complicações e insônias, traduções e análises, distâncias e proximidades, posicionamentos e silêncios, mas, entre danças inúmeras em palcos tão intrincados e labirínticos, sabemos que temos um ao outro e que o outro fará o que tiver ao seu alcance para acolher quem chama por ele.

Se eu tenho uma certeza na vida, esta é que eu definitivamente tenho bons amigos. Durante muito tempo, foi difícil me cercar de pessoas carinhosas e empáticas com quem eu tivesse uma afinidade (seja essa de qualquer tipo) e que me fizessem bem, mas hoje eu realmente posso dizer que conquistei (e fui conquistada por) boas amizades, repletas de bons encontros. No entanto, a minha amizade com esse querido amigo de quem eu falo já vem de longas datas. Na época, confiar nas uniões afetivas de uma amizade era uma coisa bem difícil para mim, mas ele, aos poucos, me mostrou que já era hora; que ele queria apenas o meu bem e era não só um mero fã, mas principalmente parte de uma torcida participante: um agente do meu bem estar, assim como um agente para os desabafos sobre as tantas agruras dessa vida.

Foram muitos os momentos nos quais os seus estímulos e fomentos se fizeram fundamentais para mim: quando eu prestei o vestibular, quando comecei a dar aula no pré-vestibular comunitário do PECEP, quando fui fazer o meu mochilão de 2 meses sozinha, todas as vezes que decidi sair de um relacionamento que não estava me fazendo bem, quando entrei em crise com a UERJ, quando decidi ir pra Lyon, quando voltei de Lyon, quando decidi morar com o Pedro e, mais pra frente, casar com o Pedro, etc etc etc... Isso é só uma palhinha de tantos os momentos que passamos juntos como observadores participantes da vida do outro, mas o meu ponto é que ele esteve presente em todo e cada movimento meu, como um dos meus maiores fãs e incentivadores - e estou certa de que tudo isso é muito mais do que recíproco.

Há relações na nossa vida que, embora muito valiosas para a gente, é muito difícil para a gente falar sobre. Isso pode parecer uma incongruência, um contrassenso, mas acho que é justamente o oposto: fica difícil falar coisa à altura, desenhar passos com as palavras que façam ecoar algo próximo daquilo. Por muitas vezes, tentei escrever aqui nesse blog sobre esse amigo - num blog que é quase tanto dele quanto meu, me pergunto como é que pode não ter nada sobre e para ele aqui ainda? Eu queria que saísse uma crônica ou uma poesia que passasse as sutilezas de movimentos dessa amizade tão imprevisível, inesperada e surpreendente. O problema é que as minhas tentativas nunca me pareciam ser suficientes para expressar o que essa fraternidade que compartilhamos significa para mim.

Foi aí que eu percebi que eu preciso começar a falar desse afeto já falando porque vai ser bem difícil eu achar que um texto sobre essa amizade não ficou aquém da mesma...

Talvez eu devesse simplesmente mandar tudo isso para você por carta, Eoin, mas acho que tinha que ficar marcado aqui, tatuado nessa espécie de diário virtual - nesse espaço que, pela sua doçura de sempre, já é tanto seu quanto meu. Thank you - ou melhor seria dizer go raibh maith agat?

terça-feira, 5 de julho de 2016

marcas corpóreas




meu corpo,
tantas marcas bagunçadas,
num entrelace
babélico:
cada rastro com uma língua sua,
particular;

mas todos esses se misturam a todo o tempo,
se embolam e disputam entre si
e quem sou eu no meio disso -
em meio a tanta incongruência?

fica até difícil acreditar que cabe nele tanto timbre, traço
e vestígio
num espaço tão
pequenino
(cicatrizes que se acumulam cada vez mais)

tanto medo
tanto abuso
alguns vinhedos
bastante intrusos
e jogo e fogo, o tempo todo;

tanta língua,
beijo, amor e sussurros
que ora me deixam à míngua, ora mais pura e em apuros;

alguns muitos livros, ventos e viagens
uns bons risos e vadiagens;

às vezes a marca vem de sutilezas que podem passar
despercebidas:
o ronronar do gato, o abraço amigo e aquelas palavras chulas
infelizes
(que nunca deveriam ter sido ditas)

são tantos olhares atravessados,
tanta (im)potência, carência
e dor;

me mancham também várias poças de choro
e uns sulcos de conquista, de sustentação
desse desalinho que vai se alinhando de algum jeito,
desse movimento tão doido e caótico que é viver

vivendo
entre saltos e quedas,
sempre;
sem parar até morrer.


segunda-feira, 4 de julho de 2016

ínterins



envolta pelas tantas nuances que existem
entre o sim e o não
vejo-me muitas vezes indecisa 
com respostas perecíveis e fugazes, que logo após 
já não mais se mantém;

a não ser quando estamos juntos
sentindo o outro,
seu ritmo e gosto:
nessas horas o sim fica muito fácil,
se infla todo,
e pendo pr'aquele lado
cheia de certezas, 
as quais também podem vir a perecer logo 
após;

mas, ali, faz sentido. 
no instante do encontro, 
a potência de nós dois não deixa espaço para dúvidas
e a gente sabe que nossa troca nem diz de pele,
diz de carne mesmo - 
e deixa um bando de marcas, tatuagens:
em cada um de nós, à sua maneira.