sexta-feira, 6 de novembro de 2015

estrangeiros



é aquele velho papo
mesmo falando outra língua,
é só tu que me entende

cê chega pra mim e me desdiz o tempo todo
tanto com a boca quanto com o corpo
ás vezes só pra me atazanar

mas quando cê quer, cê sabe o que eu digo
e me pega e me sente e me come de um jeito
só teu, só meu, só nosso

e então tudo que eu queria dizer
se mostra desdizível
mas eu sei que cê entende
e, mais que isso,
que cê sente
esse choque quase místico entre nós 2

de resto, é tudo dúvida
um dia, eu quero
noutro, nem tanto
num terceiro, já mudei todos os planos
e num quarto eu prefiro nem esboçar

o que fica sempre é o seu abraço,
nosso laço,
com cheiro e gosto de lar.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Travessia

eu, que sempre fui toda do avesso,
metendo os pés pelas mãos por onde eu
passava
de repente me vi assim,
enamorada
bem do jeito que mandam os manuais
passados uns meses,
juntamos as escovas de dente
os nossos pés embaixo da coberta
e um bando de lembranças dessas nossas vidas passadas
de antes de um ter cruzado o caminho do outro
esses que agora passavam a caminhar juntos
lado a lado

Sobre dois e um só corpo


Para o meu Inho, a quem recrio constantemente


Caía uma chuva fina. Maria abre os olhos lentamente, desadormecendo por uma dor de cabeça, como na maioria de seus dias. Enrola-se e desenrola-se na cama por mais uns minutinhos pensando se deve se levantar de vez ou persistir mais um tanto e aplicar-se para dormir um pouco mais.

Decide levantar-se e vai até o espelho, como lhe é de costume. Analisa suas novas marcas de expressão, faz caras e bocas para si e estranha todos os outros que habitam nela e que ela ainda não tem familiaridade com. Julga o quanto e no que se parece e se diferencia dos seus pais. 

Nos últimos tempos, Maria tem pensado muito em sua mãe e não entende bem o porquê . A mãe de Maria, Clara, morrera há alguns muitos anos num acidente de carro. Na época, a filha tinha 28 anos. As duas tinham o que se convencionou chamar de relação muito próxima. Conforme os manuais sociais, mantinham uma proximidade amigável, se encontrando semanalmente para um almoço, um cinema ou um café que fosse. Clara e Maria trabalhavam muito e viviam cercadas de amigos, mas sempre encontravam um tempinho para se ver. De início, era Clara quem mais procurava Maria e tentava combinar encontros, mas nos seus últimos anos de vida tornou-se mais contida em relação à filha e buscava respeitar mais o espaço da mesma. Então, Maria quem tinha de telefonar e mandar mensagens para que elas se vissem.

Clara queria muito ser avó e sempre puxava o assunto, perguntando e pressionando a filha, que não queria ser mãe. Ao menos, não ainda, não por enquanto. Maria não gostava de pensar a médio e longo prazo; nunca teve por hábito fazer planos longínquos. A priori, não tinha nada contra isso, apenas não via muito sentido. Sempre gostou muito de dançar e é assim que via a vida: como uma bela e ritmada dança, com melancólicos e necessários tropeços pelo caminho. Para ela, a dança, assim como a vida, não poderia ser planejada a partir do último ato ou a partir de seus clímax e apogeus, mas sim passo a passo, conforme às circunstâncias e os demais dançarinos que faziam parte de cada ato. 

Clara, ao contrário, sempre viveu movida a planos e objetivos longínquos. Era por eles que ela se levantava a cada dia. O que ela não sabia é que a meta que perseguimos é sempre velada. Um jovem que ambiciona o poder e a fama, por exemplo, não tem ideia alguma do que estes são e tampouco uma mulher que deseja ser mãe. O que dá rumo aos nossos caminhos e condutas sempre nos é desconhecido. Por mais que nos planejemos, não sabemos como seremos quando atingirmos o nosso dito objetivo e tudo que há por trás dele.

Percebendo que a filha pensava de forma quase oposta à ela e entendendo que a mesma não seria mãe nos próximos anos, Clara começou a questionar-se se conhecia ao menos algo de sua filha e o vazio que tomou conta dela após esse questionamento a apavorou. 

— Como pode eu, que pari, criei e acompanhei a minha filha ao longo de todos esses anos, simplesmente não saber nada dela? - perguntava-se Clara, assustada com essa possibilidade. 

Assim, resolveu conter-se. Afogada numa melancolia quase trágica, se continha em fazer perguntas e dar sugestões. Esperava, talvez, como que num passe de mágica, que a filha se abrisse para ela e que ela, enfim, pudesse conhecê-la e inscrever-se um pouco em sua carne para que, em alguma medida, compartilhassem um corpo da mesma forma que haviam compartilhado ao longo da gestação. Fora apenas lá que as duas estiveram efetivamente conectadas e agora Clara percebia isso. O que não sabia ao certo era se realmente estava pronta para se conectar com Maria, abrindo-se para um universo completamente novo, abrindo-se para um outro  outro esse que não era qualquer outro, mas sua primogênita, nascida dela e acalentada por ela ao longo de longuíssimos anos. 

Maria, por sua vez, não se incomodava com essa falta de conexão; simplesmente, não via como ser diferente e nem ansiava por isso. Poderíamos dizer que ela até gostava dessa distância. Para ela, bastava ver a sua mãe semanalmente e religiosamente, ainda que nenhum encontro verdadeiro se desse nesses cafés, almoços e cinemas. 

Maria acreditava gostar de ser solitária, mas gostava ainda mais quando conhecia alguém e daquele reunião de corpos e ideias nascesse um encontro de outra natureza - para os que acreditam, talvez uma confluência de almas. Ela não sabia no que acreditava, mas percebia que, por raras vezes, sentia a inscrição do outro em sua carne e vice-e-versa, como se fossem um só. Isso se deu com amantes passados, com mestres e amigos e ela sabia que esses eram os apogeus de sua dança vital. Talvez, por isso, não gostasse de fazer planos para si mesma. Sabia que os verdadeiros encontros não podem ser planejados, simplesmente acontecem. 

Clara nunca teve um encontro. Nasceu, cresceu, casou-se, procriou, trabalhou, tentou e morreu. Tentou ter esse encontro com a filha, sabia que ela tinha alguma coisa que nunca tivera. Maria, por sua vez, dançava; dançava por saber que as melhores coisas da vida não abriam espaço para artificialidades.

Após a morte de Clara, Maria sofreu. Tombou melancolicamente por um tempo até encontrar forças e compasso adequado para levantar-se e voltar a dançar. Terminou um ato e começou outro, mas não sabia bem o porquê: o que tinha mudado verdadeiramente?

Nos últimos dias, Maria tem pensado muito na mãe e não sabe o motivo. O curioso é que as lembranças dos cafés, almoços e cinemas dos últimos anos de sua mãe estão se esvaindo aos poucos e as memórias que mais se apossam dela são as memórias de momentos que não viveram. Possíveis conversas e viagens, brigas e abraços, olhares e risadas: tudo aquilo que não aconteceu, mas poderia muito bem ter acontecido. Por vezes, Maria fica até em dúvida se alguma de suas invenções foi real ou não. Finalmente, percebe que isso não importa, pois enquanto ela estiver viva, pode fazer e refazer a história das duas; reinventar-se a si mesma e também à mãe que teve e a mulher que Clara foi. 

A presença física de Clara contava muito menos do que pensava Maria. O que importava mais era o traço brilhante e mágico que ela havia imprimido em sua vida fortuitamente, sem intenção, e o qual ninguém poderia tirar. Antes de ir, pôde entregar à Maria o poder da reinvenção e da criatividade, deixando para ela o dom e o plano longínquo - por que não? - de recriar o que não tiveram em vida, mas poderiam ter tido, já que o amor, esse sim, foi real.