quinta-feira, 30 de maio de 2013

rien d'autre



você soprou suas palavras num envelope
vermelho

lacrou bem lacrado pra ninguém roubá-las no caminho
ou até pras serelepes não fugirem

chamou o pombo correio que,
responsável que só ele,
chegou na hora certa, bem pontual

disse pra ele levar o envelope com carinho,
"esse é especial"

e,
como mágica,
suas palavras chegaram até mim
essas letrinhas cuidadosamente escolhidas e unidas
atravessaram esse oceano que nos separa,
o fuso horário e até a falta de toque

é que elas chegaram
ainda frescas, quentes
e se instalaram em mim num triz
e eu as aceitei de peito aberto,
- me invadam, queridas,
podem vir

me arrepiei toda,
sorri inteira por dentro
(e por fora também, sorriso com a boca fechada)
me joguei na cama num suspiro profundo
abraçando o envelope vermelho
e com os olhinhos bem fechados

seu cheiro saiu dele e inundou meu quarto
do meu travesseiro então, acho que ele nunca mais sai
seu toque atravessou as palavras
e, imaginando, te senti e arrepiei
to-da
até os dedinhos do pé

e sua imagem nunca esteve tão visível, chéri
de forma que eu podia até mesmo
abandonar todas as minhas necessidades fisiológicas 
agora
comer pra quê?
dormir pra quê? 

afinal,
de que mais eu preciso
pra viver
além de envelopes
vermelhos?
rien d'autre.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

confete




menina iluminada
que acorda num só pulo, sem pestanejar
e já vai direto pra cozinha

mas, em vez de comer,
abre aquelas janelas eno-o-ormes,
olha o céu, fecha os olhos, respira bem fundo,
pega seu saquinho de confetes
e começa a jogá-los na rua com aquele riso frouxo e gostoso

diz que quer enfeitar a cidade
e tirar um sorriso de meia dúzia de franceses ranzinzos

(e não é que ela consegue?)

preguiça

mal vi você chegar
e nem me dei conta
de quando você levou minha coberta
minhas roupas, minha proteção
e me deixou à mostra, nua

de repente, eu era feliz de novo
mesmo envolta por essa vulnerabilidade mil

e agora eu tou rendida demais
já e ainda

então vem pra cá
e deixa todo o resto pra depois
viva o pecado capital da preguiça..
vem desperdiçar suas horas comigo
fazendo o nada mais gostoso que existe
se espalha todo pelo chão
se estica, se entrelaça
et m'embrasses!





te mostrar

fecha os olhos
e me deixa contar
suas pintinhas espalhadas
pelo corpo

me deixa contar
nessa meia luz
um segredo só meu
e não se assuste,
isso conta muito pra mim,
mas me ame mais logo em seguida

me deixa contar também
quantas vezes eu contei os meses,
as semanas, os dias
pra te reencontrar

e agora a gente tá aqui
e eu vou te contar,
nem caiu a ficha

então pra que contar vantagem?
prefiramos contar um com o outro
é tão simples ser feliz,
me deixa te mostrar

sábado, 4 de maio de 2013

chega pra lá um bocado
me deixa sentar do seu lado
e não me encha mais de mentiras

tamos os dois desperdiçando
doçura e palavras,
mordidas e assopros,
alfinetes e pomadas

sabe aquela nossa foto que você revelou?
perdi a primeira e você fez questão
numa das nossas semanas de lua-de-mel
de me dar uma segunda
cê lembra?

calma, essa não perdi
ela simplesmente evaporou
junta de todo o resto
de mim, pra você
e de você pra mim

já não tem mais nada de nós dois
nesse quarto ou na cozinha
e nem na padaria
ou no banheiro daquele jazz

na beira do rio então, imagina
nem nos passeios de bike
ou nos cafunés d'antes de dormir
tudo evaporou num triz
como se nunca me tivesse acontecido

et voilà, cê conseguiu
agora passar bem,
meu bem
porque santa cê sabe muito bem
que eu não sou

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Vinte e dois

Saí do mercado toda carregada e me deparei, ainda pelo vidro, com a chuva lá fora. Observei, ao vivo e a cores, o céu se fechando mais e mais e os trovões aparecendo. "Inferno, vai ser uma volta pra casa foda, mas que seja de uma vez pra passar logo", pensei. Dizia pra mim mesma "vas-y, vas-y" enquanto corria com as sacolas recicláveis pra fila do tram. Sobrevivi à metade. Saí do tram e peguei o ônibus pra subir pra casa. Mais uma corridinha et voilà, estou na frente do meu prédio. Me molho mais um bocado procurando a chave, mas entro sã e salva. Subo as escadas ainda carregada - para os que me conhecem, não preciso nem dizer que moro no último andar de um prédio sem escada, né... como sempre Murphy me perseguindo... - e, claro, o grand finale. Tropeço, desço de bunda os primeiros 5 ou 6 degraus que eu tinha subido dessa leva de degraus e comigo, evidentemente, tropeçam todas as mercadorias que eu havia comprado no mercado. Algumas caem os 5 ou 6 degraus como eu e outras continuam escada abaixo. Me levanto já puta da vida com esse tal de Murphy e começo a catar os itens, contando um por um. Um, dois, três, quatro... Dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois. Como a minha idade.

Peguei a última mercadoria no primeiríssimo degrau lá debaixo - diga-se de passagem, uma lata de leite condensado - e sentei nesse mesmo degrau, já sem pressa e toda molhada. Vinte e dois, como a minha idade. Já é alguma coisa, não é? Acho que talvez seja por isso que eu tenha ficado cada vez mais exigente com as pessoas que me cercam. Parei pra pensar nos meus anos e descobri que talvez eu não tenha anos o suficiente pra dar e vender por aí. É claro, sou muito nova ainda, mas já tenho um passado raso demais, não aceito mais futuro nesses moldes.

Me sinto então como quando estou comendo um dos meus doces preferidos. No começo, como igual a uma desesperada e, conforme a tigela ou prato vai se esvaziando, meu ritmo vai diminuindo, deixo de ser displicente com meu doce, agora curto pedacinho por pedacinho e saboreio por longos segundos na boca.

É que já não tenho tempo pra lidar com almas pequenas, com gente que é mais ego do que humanidade. Com brigas por postos, sucesso e poder. Já não tenho tempo. Não estou mais disponível para conversas intermináveis sobre cousa alguma - ou, ao menos, sobre cousa alguma que realmente importe. Não estou mais aqui para discutir ou assistir que discutam sobre a vida alheia, sobre quem fulaninho ou ciclaninho namorou ou deixou de namorar e como era o tal do relacionamento que existiu ou que, por um triz, não vingou. Apesar da mesma idade cronológica, mais e mais me vejo cercada por pessoas imaturas. Adultos imaturos.

Da mesma forma, já não tenho tempo pra excesso de pudor ou de suscetibilidade. Chega de melindres, cresçamos todos ou deixem-me os que nada têm a me acrescentar. Meu tempo tornou-se por demais escasso para "essa gente careta e covarde", como já diria Cazuza. Esse já entendia bem há muito tempo do que eu falo agora e, caridoso como só ele, pediu inclusive piedade pra toda essa gente com um gostoso de um blues.

Os tantos que me cercam - salvo as poucas e abençoadas exceções - não discutem conteúdos, ficam presos aos rótulos e passam a vida toda remoendo as mesmas questões e buscando o que não se pode ter. Gente que não muda conforme a lua, conforme as cores do dia, conforme à trilha sonora imaginária da cabeça. Ou melhor, gente que nem tem trilha sonora imaginária. Gente que não sente arte, que não tem arte nas veias. Mais uma vez roubando as palavras de Cazuza, gente que "não sabe amar, fica esperando alguém que caiba no seu sonho".

Minh'alma tem pressa e eu também. Eu quero conviver com gente humana, muito humana, creias de escrúpulos. Gente que ame seus escrúpulos. Falo de escrúpulos no bom sentido, em relação aos absurdos da vida, à falta de humanidade. E, ao mesmo tempo, gente sem correias ou que as deseje afrouxar cada vez mais. Abertas, artistas - seja de profissão ou só de alma, pouco importa o ofício.

Eu gosto é de gente que ri dos próprios tombos e que detesta ostentação. Gente terrivelmente mortal e consciente disso e que, por isso mesmo, escolheu viver. Afinal, não é pra isso que estamos aqui? Estou velha pra gente de mentira, eu quero é gente de verdade.  É que meus pratos e vasilhas já estão no final, preciso degustar os meus doces com muita calma e sabedoria.

Pelo menos por hoje eu ainda tenho a lata de leite condensado que está na minha mão, né? A mercadoria número 22, como eu, e que deu lugar a essa epifania... hora de pegar as coisas e subir as escadas de uma vez porque as minhas roupas ainda estão molhadas e, como diria a minha avó, "isso é gripe na certa!"