terça-feira, 11 de setembro de 2018

Tempo, espaço e arrepio


"Alice: Quanto tempo dura o eterno?
Coelho: Às vezes, apenas um segundo."
(Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll)

Ela, afoita, vive correndo de um lado pro outro. E eu, recorro ao recurso da utilização da terceira pessoa em vez da primeira porque, por vezes, tenho necessidade de me afastar de mim mesma para historicizar as invasões que o mundo imprime em minha carne. Do contrário, eu as perco. Elas se vão, escorrendo pelos ralos da cidade, dos apartamentos; escorrendo pelas paredes e pelas fachadas bonitas e feias, renovadas e abandonadas; se esvaem pelos rios e mares, ou simplesmente evaporam nos céus; ou, ainda, tornam-se poeira, graxa, petróleo, mausoléu. É urgente que eu não perca as inscrições, não de novo, não mais uma vez. Eu, que sempre deixo tudo passar; que, a despeito de tanto sentir, tanto sofrer, mantenho-me inerte tantas vezes: deitada, apática, sem encontrar meios de me mexer. Me mexer para onde?, essa é a pergunta de fundo que me atormenta e me mantém apagada, em cima do muro. Canso-me de meus impasses. Há momentos que os resolvo num triz e vejo com tal força: enxergo e sinto desde naves cintilantes, a amores incandescentes; vejo e sinto a magia transparente por detrás de palavras que me dizem tanto. Me vem um desejo louco de escrever e inscrever toda a experiência em um folha, em uma árvore qualquer, em um corpo alheio, para que essas ainda-não-palavras não morram comigo, em mim, ocas; inférteis, infrutíferas. E eu as deixo ir. Eu as nego. Não crio condições mínimas para elas nascerem. Vivo abortando palavras: eu, a negligente criadora. Palavracida, essa sou eu; uma assassina de palavras embrionárias. Penso que não tenho condições de as tê-las, de as parir. Boba que sou, nem percebo tantas vezes que o parto nunca é feito totalmente pela mãe; o bebê também precisa querer nascer. Se é tirado à força, sem atmosfera possível, se não é convencido de que vale a pena viver, que sua vida é possível para além da sobrevivência, o bebê escolhe morrer. Precário demais para o mundo.

Como manter-se e fazer-se constantemente sublime? Como fazer uso de seu espaço corporal e expandi-lo? Como não cair no funcionamento da fuga de si mesmo e permitir que nasçam flores de você? É isso que ela, que vive correndo afoita, se questiona, dia após dia. A qualificam de inquieta, de indócil, de insubmissa, de desassossegada. Que desassossego é esse que nos toma? O que a inquietude expressa, afinal de contas?

Viver correndo de um lado para o outro, sem saber ao certo aonde se quer chegar com tais corridas, cada vez mais velozes. Assim como o velho coelho da Alice: nervosamente indeciso, constantemente atrasado, oprimido pelo tempo. Antítese da menina, ele é esvaziado de vigor, potência e determinação, mas surge ao longo da história como motor que a faz seguir seu rumo. Sem um mínimo encontro com a opressora organização da cronologia, Alice se perde no tempo e no espaço e se esparrama de vez, tornando-se desforme.

A consistência temporal e espacial depende de alguma historicização. Mas o coelho nos mostra que a cronologia como único recurso nos escraviza. Se vivermos olhando para esse relógio, o corpo vira máquina para dar conta da performance exigida pelos imperativos discursivos que se apoderam desse corpo. O corpo entra em estado de sítio, em modo de emergência, e passa a ter como único propósito a manutenção da sobrevivência. Sobreviver é subsistir em situação de precariedade extrema, em terreno ou de acordo com regras inadequadas, inviáveis à vida fértil; após uma grande perda, após um choque, resta a nós a sobrevivência. O trauma instaura um modo automático de sobrevida, de vida sub-humana. O sujeito se torna um coelho branco, correndo infinitamente sem chegar a lugar nenhum.

E a Alice sem a sua antítese, o Coelho? Alice está entregue às suas sensações corporais, às suas pequenas percepções. As percepções são o início de qualquer história. Primeiro, vem-nos a sede pela escrita de algo. Em seguida, fantasiamos cenas, sons, paladares, tatos , cheiros... partículas várias que se mostram a nós cada uma à sua forma e no seu tempo e textura. A partir daí, buscamos recursos para contar essas histórias. Recursos linguísticos, sonoros, gestuais, geométricos... recursos possíveis. Contamos a nossa história em cada suspiro, em cada olhar, em cada refletir. Ao refletir, refletimos diante de um outro que pode, enfim, nos enxergar a partir de sua ótica, de seus poros, de seu tempo e textura.

Para tanto, é preciso parar um pouco. Suspender o tempo cronológico, expandir o espaço, torcer as fronteiras do possível, alargar o que me fora garantido por um outrem. A Alice não sabe quem é e, por não saber, expande suas fronteiras identitárias, seu tamanho físico, seu tempo hábil, criando fantasias e, com elas, realidade.

Como conjugar o tempo cronológico com o tempo de kairós, um tempo qualitativo, um tempo da experiência do momento oportuno? O Coelho e a Alice nos propõem essa reflexão. Cada um de nós encontramos (ou não) os meios de conjugar esses dois tempos, paralelos e inescapáveis à fruição da vida.

Nos ensina Alice que só podemos alcançar o impossível se acreditarmos que é possível. Cocteau concorda dizendo: "Não sabendo que era impossível, foi lá e fez".

Alargar o tempo e o espaço. Deixar o corpo crescer, diminuir, conforme a música pedir. Seguir o som, deixá-lo entrar nos poros. Instaurar um som no mundo, um som que mexa estruturas, um som que desafie condutas novas, um som que arrepie alguém.

A sobrevivência é um engodo, um castigo, uma mortificação: um fazer-se podre em vida. Diferentemente, podemos expandir a vida e incitar torções no aparelho mundano. Abandonar as roupas usadas, nos termos de Pessoa. Abandonar os velhos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares: à correria, à sobrevida, à penitência, ao desperdício.

Ser arrepiado pelo mundo e arrepiá-lo de volta: é para isso que estamos aqui. 



Nenhum comentário:

Postar um comentário