terça-feira, 6 de novembro de 2012

vulto em pedaços

ontem à noite, o quarto tava meio sombrio. dormi com medo, contando carneirinhos e torcendo pra pegar logo no sono, pra me transportar pra um outro mundo, um mundo que não doesse. um mundo em que os risos macabros imaginários e os toques fantasmagóricos alucinógenos não me torturassem. de repente, pelo menos ontem, eu acho que o papai do céu olhou por mim e então me fez cair no sono, ainda que temporário. mas sonhei com você, mulher bonita e arrepiante. na verdade, nunca pude ver seu rosto, só vejo o vulto, mas sinto a sua beleza, ela me toma toda. e até uma certa alegria, sabia? engraçado, não foi nenhum pouco medonho sonhar com o seu vulto. não foi a primeira vez e acho que está ficando cada vez melhor. o quarto é vermelho sangue, as luzes estão um pouco apagadas e o vulto passa. uma. duas. três vezes. não me amedronta. é que você é quase feliz. um vulto feliz. acho isso engraçado. é que, quando criança, filha única, medrosa, eu costumava ver vultos. morria de medo, como você pode imaginar. então cresci ligando uma coisa à outra: o medo e os vultos. acontece, né. ah, esqueci de explicar. desculpa, eu sempre me embaralho com as palavras - não só com elas, mas também com todo o resto. eu disse que você parece quase feliz. sabe por que quase? é que eu sinto uma coisa quebrada em você. pelo visto, não é um quebradinho qualquer. e você deu uma meia dúzia de remendos que costumamos dar em nós mesmos, sabe? é normal, você não é a única. só que, moça, acho que tá na hora de tentar consertar... chama um técnico logo! ou uma costureira, um eletricista, um psicólogo... nem que seja um faz-tudo, alguém tem que resolver! seu remendo não deve segurar por muito tempo. eu, que nem te conheço, que nunca fui apresentada a você, acessei a sua dor em 3 quase-aparições suas - nem aparições foram, né, afinal você é um vulto, só saiu correndo, bem rápido. não dava nem pra ver o seu semblante direito, você não tinha foco algum. só notei uma silhueta humana, quase toda escura, negra. a única parte distinguível era o rosto, um cinza claro esbranquiçado. mas não sei direito, você passou rápido demais. era pra ser assustador, moça, eu sei, mas eu te entendo.  acho que você não tá acostumada a não causar medo nos outros, não é? presta atenção, vou deixar essa carta aqui do lado do meu travesseiro - é que suspeito que você me visite de tempos em tempos. se você chegar a ler, espero que aceite meu convite pra uma aparição mais lenta, menos desfalcada. pode ser? quem sabe eu te ajudo a colar a sua parte quebrada.. e você? você pode me fazer parar de ter medo do escuro, ainda que acordada. ia ser ótimo nunca mais ter que apelar para os carneirinhos..

2 comentários:

  1. Amazing... I understand vulto now :-) You used to see strange figures when you were a child? Is this a real story? I´m interested!

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  2. Que coragem! O máximo que fiz foi gritar pros vultos nunca mais me assustarem, mas conversar com eles? Quem será essa mulher?

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