Aqui em Lyon, eu moro numa residência universitária que fica num bairro bem, bem alto, perto da igreja de Fourvière que pode ser vista em qualquer canto da cidade por estar no topo da colina - impressionante como colina dá uma idéia diferente da idéia de morro para nós brasileiros, né?
Bem, moro aqui nessa residência há 5 meses e essas são minhas últimas semanas por aqui. Como partirei em breve, decidi que esse mês (junho) eu não pagaria o transporte da cidade e faria tudo a pé (ou de bike). É claro que o fato do excesso de pães deliciosos e doces melhores ainda estar realmente me engordando contribuiu um pouco pra essa decisão (nem tão) repentina. Enfim, a questão é que essa idéia tem se mostrado realmente ótima. Como já estou de férias, passo o dia inteiro andando sem pressa. Meus amigos aqui ou são brasileiros ou já aceitaram meu jeito brasileiro e nem se importam mais com meu atraso. Como não moro num lugar tão central - e sou enrolada que dói -, demoro um bocado pra chegar em cada programa que eu combino. Mas eu chego. E ainda chego tendo aproveitado de uma boa andada na cidade com o tempo agradabilíssimo que FINALEMENT (só o caps lock pra demostrar o quanto esse clima foi esperado...) chegou por aqui. Além disso, tou dando um jeito nos quilinhos a mais e na flacidez prematura que uma jovem de 22 anos que sempre gostou de praticar exercício não deveria enfrentar.
Bom, esse é o plano de fundo pra introduzí-los nas minhas últimas semanas de passeios intermináveis pela cidade que chegam a 18 km de caminhada por dia (conferi no google maps orgulhosa de ter saído do sedentarismo). Nesse cenário de calmaria e sincera devoção à Lyon foi que eu voltei pra casa hoje. E as voltas são ainda mais calmas porque são subidas. "Devagar e sempre" é o meu lema.
Essa noite, eu fui numa soirée à la française com uns amigos estrangeiros, bebi um vinho ou outro, joguei um papo furado, me deparei com algumas coisas que amo nos franceses e com outras muitas que detesto neles e, por isso e pelo relógio que já marcava lá pelas 4h30, peguei minha bolsa, me despedi de todo mundo e comecei mais uma caminhada. De onde eu tava, seriam uns 45, 50 minutos. Mole, mole.
Passei pelo centro, atravessei um dos rios da cidade (o Saône), fui passeando por Vieux Lyon dando umas espiadas na Fouvière lá em cima da colina e toda iluminada. E eu ia revezando entre uma postura calma e contemplativa e uma postura serelepe que arrisca até mesmo uns passinhos de dança pelas ruas pouco iluminadas e vazias. Nessa madrugada, por exemplo, eu tava com aquela música do Chico na cabeça, "quem te viu, quem te vê", e comecei a subir a ladeira que liga Vieux Lyon a Saint Just (bairro bem próximo de onde eu moro) cantarolando a tal da música.
"Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala / Você era a favorita onde eu era mestre-sala / Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua / Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua / Hoje o samba saiu, láláláiá, procurando você / Quem te viu, quem te vê / Quem não a conhece não pode mais ver pra crer / Quem jamais esquece não pode reconhecer"
E eu ria por dentro pelo prazer imenso de fazer aquele caminho tão gostoso e fui me lembrando que esse caminho nem sempre foi assim pra mim. A primeira vez que subi a tal da ladeirona sozinha foi porque eu não tinha outra opção. Já era tarde, não tinha mais transporte e eu não tinha dinheiro pro taxi. Vi no celular o caminho pra subir e fiz um mapinha nas costas de uma notinha da épicerie. Era inverno, frio da porra, eu com 2 semanas de cidade, toda indefesa e encasada, desacostumada e despreparada praquele frio, praquela solidão, praquilo tudo. E fingindo estar preparadíssima pra tudo, como sempre. Forte por fora e a mais indefesa de todas por dentro. Nevava bastante. Era difícil subir, escorregava. Eu achava a ladeira íngreme demais, uma verdadeira missão e simplesmente não via nada de agradável em subir a pé. Tinha medo de cada curva. Imaginava possíveis atos de violência a cada instante, super alerta - sou brasileira, né? Assassinos e estupradores saindo de trás dos carros, surgindo nas ruas escuras e por aí vai. "Tem alguma coisa errada", eu pensava. "Como um lugar tão deserto pode ser seguro?", me perguntava encucada. Achava muito suspeita a calmaria da cidade e andava com os olhos arregalados, atenta a tudo.
Repassando tais lembranças, percebi que até chegar aqui tracei um bonito caminho com essa cidade tão viva e linda. Um caminho que vai ficar eternizado pra mim nessa ladeira já tão querida.
É que, aos poucos, o inverno foi dando uma sossegada e a temperatura já não era negativa e ficava ali pelos 0 ou 5°. E isso já melhora muito, é sério. Passei a ter menos medo das subidas e a pisar com a sola do pé nessa cidade incrível. Nada de ponta do pé, viva o contato! Nessa época então, lá pra março, passei a conseguir ver a beleza de cada prédiozinho e cantinho desse meu caminho de volta pra casa. As janelas que mostravam salas em meia-luz já não me deixavam mais apreensiva, agora eu queria é saber sobre cada pessoa que morava por aquele meu caminho que já passava a ser tão habitual... A desconfiança foi indo embora e dando lugar às queridas curiosidade e criatividade.
No fim dessa mesma ladeirona, tem uma escada. Depois dessa escada, já é Saint Just e, a partir daí, faltam em torno de 10 min até a minha residência. A tal da escada, depois de tantas subidas e descidas, já virou um referencial pra mim, é o meu lugar por aqui. Quantas Gabrielles diferentes já desceram e subiram aquelas escadas? Quanta transformação ela acompanhou? De quanta vida ela foi testemunha? Essas percepções ficaram tão claras de repente que quase se materializam diante dos meus olhos.
Portanto, desde o primeiro mês eu viajava vislumbrando todas essas possíveis mudanças que ocorreriam - e ocorreram, um pouquinho mais pra direita ou pra esquerda do que o que eu imaginava, mas ocorreram - e adotei a escada como meu símbolo. Aí eu disse pra mim mesma que quando eu estiver indo embora de Lyon eu vou voltar na tal da escada e ficar uma boa meia hora sentada tentando repassar essa enxurrada de informações do último ano. E ficarei então só vendo o tempo passar e as coisas se transformarem. Com ou sem a minha interferência.
Portanto, desde o primeiro mês eu viajava vislumbrando todas essas possíveis mudanças que ocorreriam - e ocorreram, um pouquinho mais pra direita ou pra esquerda do que o que eu imaginava, mas ocorreram - e adotei a escada como meu símbolo. Aí eu disse pra mim mesma que quando eu estiver indo embora de Lyon eu vou voltar na tal da escada e ficar uma boa meia hora sentada tentando repassar essa enxurrada de informações do último ano. E ficarei então só vendo o tempo passar e as coisas se transformarem. Com ou sem a minha interferência.
O ponto é que assim como o meu olhar para com esse caminhozinho foi se alterando conforme o tempo passava, tantos outros olhares estão por aí em constante mudança nada menos que o tempo todo. E hoje esse meu caminho já me enche de amor e me sinto como se eu subisse derretendo, passo a passo, e deixando meu líquido pelo chão; parte de mim; pedaço; carne. É que eu sinto que não sou só eu que mudo a cada vez que passo pelo caminho, ele muda comigo. A cada vez. Assim como mudou hoje quando aquele garotinho de 4 anos dos cabelos loiro-ovo passou por lá pela primeira vez com o avô, descendo bem devagar, observando tudo, de mãos dadas com o seu velho, sem pressa. O menininho é sensível o suficiente pra saber que avô não se apressa. Ele tem isso muito claro na mente "pai e mãe, tudo bem, mas avós são velhinhos e a gente não apressa".
Se eu me concentro durante a subida, eu quase sinto esse passeio do avô e do netinho. O amor ficou no caminho e eu quase posso absorvê-lo; ele faz cócegas nos meus poros.
Engraçado como as coisas, lugares e gente viram lar pra gente de pouquinho em pouquinho. No começo, nada aqui tinha gosto de lar, de meu, de casa. Era simplesmente um alojamento; uma faculdade com matérias interessantes, mas vazia; pessoas bonitas e inteligentes, mas com quem eu não me conectava, como se cada um falasse uma língua diferente e incompreensível para os demais. E eu perdida nesse meio. Aos poucos a vizinhança fica com cara, cheiro e gosto de lar. O quarto já vira "meu cantinho". Aos poucos, você vai adquirindo lugares preferidos na cidade. As pessoas passam a te conhecer e você já tem uma coleção enorme de rostos e sorrisos familiares. E uma hora você já é gostado, já é querido, e as coisas começam a fluir melhor, com mais leveza e naturalidade. O quebra-cabeça vai se encaixando sozinho, parece mágica.
E até parece que só a cidade que te mudou, né. Até parece que os lugares que você foi te mudaram, que as pessoas que você esbarrou pelo caminho te mudaram e acrescentaram um bocado daqui e dali, que o que você viveu ficou pra você e pronto. Mas não é bem assim. A gente não transforma só as pessoas com quem a gente convive, a gente transforma também os lugares, o tempo, os olhares. Saímos deixando nossas marcas por aí pelo mundo, o tempo todo. Em cada um dos prédios dessa cidade, por exemplo, muita gente atuou, tem muita história. Quem construiu, quem morou, quem olhou, quem fotografou, quem visitou, quem passeou, quem reformou, quem, quem, quem. São milhares de quems que deixaram um pedacinho de si naquele prédio. Aquele prédio que foi um hoje e amanhã já será outro. É tudo vida, vida, vida; e a mudança não pára. E assim acontece também com as praças da cidade, com os palcos de shows, com a beira do rio, com os parques e com as escadas (especialmente com aquela). Isso porque as cidades existem pras pessoas, não existes sós; elas carregam com elas um pedaço de cada um, numa mudança constante.
E, nesse contexto, temos eu, uma pequenina peça oriunda do nosso enorme Brasil, que tem como língua materna o português carioca e que sente nas veias as raízes gritando, em coro. E essa pecinha tá aqui, aberta, transformando e sendo transformada a cada caminhozinho por Lyon; caminhozinho que eu percorro com a cadência única dos meus passos, com o gingado que arrisca um samba no meio da ladeira às 5h da manhã, com o sorriso por dentro que se reflete nos olhos e com o respirar fundo que dá tempo pro ar encher meus pulmões não só de ar, mas também de vida.
Well, you already know what I think of this, and it seems to have been a hit on facebook, so no need to feel embarrassed about having put it there. I really liked your friend Marianna's comment telling you to write a book. I even thought about clicking like, but then thought she wouldn´t know who I am.. ha ha haha You should and you will write a book, but in your own good time. In the meantime I´d love to see you getting a job writing a column (a cronica) for some newspaper.. you´d be great a it. Mind you, reading this tonight I thought about something else (and I have to confess I am almost reluctant to suggest it to you for a couple of reasons, but mainly because of greed, I want read more and more of your poetry (and your poems to bed)... before you think I am compeletely crazy, let me tell you my idea. I think a month or so ago, you published something from a blog about travelling, and more recently you and many other people shared a blog about spending less and travelling more.. so the thought occurred to me why don't you have your own blog for non-poetry writing - even travel writing perhaps...? Yours is as good as any I have seen. ok I will admit I am biased, but I work most of the time translating and although I don't like saying bad things about Brazil, people here don´t write well. You do... really, amazingly well. Maybe I am completely crazy, but I could see you writing a blog that would be a big hit.... just a thought hah aha but please keep writing your poetry :-)
ResponderExcluirEoin esta certo. Que delicia ler sua poesia! Como voce escreve bem!!!!!!!! Lindo, lindo, lindo! Podia virar musica tambem! Tem ritmo, tem vida, tem algo diferente, que nao sei explicar....
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