Para Diego Asensi
Hoje, em mais uma das nossas inexplicáveis conversas, você me atentou pro meu costume de preferir deixar na estrutura do vazio as coisas mais importantes de serem ditas. Esse toque em nada tinha a ver com a nossa relação, mas me fez pensar em tudo o que eu já pensei tantas vezes em te dizer e decidi não verbalizar por achar que o silêncio já dissesse por mim. Acho que tenho a mania de pensar que o silêncio muitas vezes diz mais do que as palavras e, apesar de eu adorar escrever, eu penso que essas nem sempre conseguem fazer jus a tudo que o ser que fala quer exprimir. Nossos sentimentos e nós mesmos vamos e somos muito além delas. O curioso é que, ainda assim, elas me libertam de uma forma única, quase mágica; é como se eu renascesse depois de cada sensação que eu verbalizo. Nasce uma nova Gabrielle.
Diante dessa consciência do poder libertador das palavras e da sua brilhante - como sempre - percepção sobre mim e sobre as minhas tendências, resolvi dessa vez pôr a estrutura do vazio abaixo e te narrar (quase) tudo (d)o que você é pra mim - ou até onde as minhas palavras puderem te mostrar.
Essa noite tivemos mais uma conversa incrivelmente reveladora e, dessa vez, em poucas horas. Só com você eu tenho tamanha troca. É como se você fosse um desdobramento de mim e eu, de você. Dizemos meias palavras e o outro já entende todos os sentimentos que estão assolando o coração do que fala.
Há mais ou menos um ano atrás, quando você entrou na minha vida, eu não podia imaginar a baita transformação que estava prestes a me acontecer - e que foi, em grande parte, causada por você. A ironia disso tudo é que você é meu primo - de 3o grau, mas é - e nós sempre soubemos quem o outro era e ouvíamos notícias ocasionais do outro pelos nossos parentes. Frequentávamos até mesmo os aniversários do outro quando crianças, mas sempre sem muita interação. Já crescidos, acabamos no mesmo curso, na mesma faculdade, comigo 2 anos abaixo de você e nos esbarrando vez ou outra pelos corredores cinzas daquele prédio. Acabamos com os mesmos sentimentos sobre o curso, cada vez mais decepcionados e perdidos. Mas disso e do que realmente importava, ainda não sabíamos nada a respeito do outro. Pra mim, você era só um primo distante e inteligentíssimo, como dizia toda a família.
Me perdoe pelo clichê, mas se é que existe destino, eu tenho certeza que a nossa aproximação estava destinada e, em pouco tempo, essa sensação tomou conta de nós dois e nos fez criar laços indestrutíveis em poucas semanas, em poucos meses. E minha vida ia acontecendo nos momentos com e sem você, mas era só quando a gente se encontrava que eu realizava tudo o que estava se passando. Você me abriu os olhos pra todos os aspectos da minha vida, você me escutou e me fez querer falar coisas que eu nem sabia que eu sentia. A cada encontro, uma epifania.
E foi ainda na primeira noite que saímos juntos que você plantou uma sementinha na minha cabeça com a pergunta "mas você não vai fazer intercâmbio? Como assim? Sempre pensei que você iria." A partir daí, você se utilizou do seu incrível dom de convencimento pra me mostrar "que eu era interessante demais pra não me dar esse presente". Eu refutava, não achava que eu realmente viria. E aí então você me mostrou que era viável financeiramente sem pedir nada pro meu pai.
Acho que não passou nem uma semana entre o dia que você começou a tentar me convencer e o dia que eu acordei completamente convencida e saí espalhando a notícia por aí. Comecei a me mexer e ver tudo o que eu precisava fazer para ir pra França no semestre seguinte - e aqui estou eu!
Se esse fosse o único ponto sobre o qual você me influenciou, já teria sido muita coisa. Mas não ficou por aí.
Você me libertou das amarras que o meu entorno e eu mesma colocamos em mim. Você me fez duvidar de todas as minhas crenças, me fez repensar as minhas amizades, as minhas relações familiares, os mecanismos de defesa que eu aciono quando me envolvo amorosamente com alguém e a minha profissão. Você me fez pensar por mim mesma depois de tanto tempo engolida por pressões, obrigações, rótulos e sensos comuns burros. E me fez pensar pra discordar de você em tantas daquelas nossas conversas que duravam ás vezes 6, 7 horas no chão da minha sala, já com o dia amanhecendo. A gente terminava cansados e não porque o assunto tinha acabado, mas porque a cabeça já tava doendo, já era demais, "semana que vem a gente continua". Eram como sessões de terapia onde não existiam psicólogo e paciente; os dois faziam ambos os papéis. E eram muito bem feitos, diga-se de passagem. E, não por acaso, foi numa dessas que eu e você percebemos que talvez esse fosse o meu caminho; que o meu papel de terapeuta não deveria ficar restrito aos amigos e que isso poderia me fazer feliz. E não é que ainda acho que estávamos certos? Vim pra França, peguei alguns cursos de psicologia, comprei alguns bons livros e li outros tantos bons textos. E só me encanto mais e mais. E já não cogito não fazer a minha segunda faculdade - dessa vez, uma escolha muito mais madura e que passou por muita reflexão.
Eu fecho os olhos e me vem a imagem de nós dois, como irmãos, no deck da lagoa. Eu vomitando sensações e pensamentos que eu não fazia nem idéia que eram parte de mim. Coisas que eu nunca acessaria se você não tivesse me feito acessar. E, tudo isso, naquele cenário, com aquelas estrelas me abençoando no meio do meu total desconhecimento de como pensar e agir diante de todos aqueles sentimentos novos que de novos não tinham nada. A grande novidade era eu me deparar com eles e abraçá-los; recebê-los como parte de mim e refletir, enfim, sobre isso tudo.
Todos nós, até o mais seguro dos homens, passamos por momentos de hesitação e de dúvidas de todos os tamanhos e naturezas. E acho que as pessoas normalmente tem a sorte de ter alguns anjos da guarda que as empurram pra fazer o que elas tem que fazer, mas que não conseguiriam enxergar sozinhas a necessidade de. No meu caso, acho que todos os meus "empurradores" estão concentrados em você, simplesmente a pessoa que eu mais admiro e escuto - talvez por ser o único que realmente fala a mesma língua que eu. E é por isso que eu tenho tanto a te agradecer.
Obrigada por insistir pra eu levar o tecido pra lagoa e fazer o que eu tanto gosto não só nas aulas, mas também em quintas à toa ou domingos chuvosos. Obrigada por sugerir que eu escrevesse e, assim, ter me feito tantas vezes acessar a mim mesma em um nível muito mais profundo. Obrigada por me dizer tantas vezes que você acredita que eu tenho talentos que a minha autocrítica e a minha insegurança nunca permitiriam que se desenvolvessem sem o seu incentivo. Obrigada por martelar que eu falasse certas coisas que deveria há muito tempo falar pra certas pessoas. Obrigada por me fazer enxergar o quanto eu precisava desse tempo fora e ter me apresentado isso exatamente no momento em que eu mais precisei. Obrigada por me fazer abandonar o celular no meu ápice de stress e passar o dia inteiro livre das melindres e chatices alheias, coisa que eu nunca conseguiria ter feito sozinha - é que eu sou virginiana, você sabe. Obrigada por ter me feito criar limites nos meus tantos relacionamentos de mão-única e ter me mostrado que individualismo é muito diferente de egoísmo.
Obrigada por possibilitar esse encontro meu comigo mesma, em todos os níveis, e ter me dado o empurrãozinho - na verdade, empurrãozão - que faltava pra que eu me transformasse definitivamente numa mulher. Sem você nada do que eu sou hoje teria sido possível porque eu tinha esquecido que eu tinha pernas pra andar por mim mesma no meu próprio caminho que nem eu nem você conhecemos, mas que eu vou encontrar. Obrigada por ter me ajudado a alcançar essa certeza, ainda que o céu pela frente tenha uma nuvem ou outra deixando o futuro meio nublado e incerto. Obrigada por me mostrar que não existe um caminho certo, que não existe um comportamento certo, que não existem cardápios fechados na nossa vida; que podemos apagar e escrever diariamente os nossos projetos, nos reinventar e nos redescobrir e que só assim é que a gente se descobre e se conhece de verdade. Obrigada por ter procurado e encontrado o controle da minha vida por aí, perdido, e por tê-lo me dado de presente, comme cadeau, embalado com papel machê e tudo.
Em tempos - e em terras! - que quase ninguém se olha nos olhos e realmente entende um ao outro (e se interessa por), me vi quase que forçada a agradecer àquele com quem eu mais troquei e mais me fez crescer. Obrigada por ter percebido as minhas crenças bobas e as minhas descrenças mais bobas ainda, os meus medos e inseguranças tão óbvios, mas que mais ninguém enxergava e tudo mais que me paralisava e, diante disso, ter gasto um pouco (na verdade, bastante) da sua energia comigo, insistindo.
Te agradeço, enfim, por ter me ensinado tudo o que me ensinou e por ser e ter sido muito mais que um primo: um irmão, um pai, uma mãe e um amigo.
Beautiful, amazing. In fact, it is hard to write about this, hard to do it justice. It is something lovely about a friend, but it is also written with such style and grace.. it is just wow....
ResponderExcluirKeep writing... always
:-)
I thought about putting this in fb, but decided here was more appropriate. I am not a big James Joyce fan, I prefer to read poetry, but I know that many psychoanalysts, especially Lacnians love him. This is an article about him and psychology (and sex). I think you will like it.
ResponderExcluirhttp://www.sul21.com.br/jornal/2013/06/comemorando-o-bloomsday-o-sul21-fala-sobre-o-sexo-em-ulysses-de-joyce/