Saí do mercado toda carregada e me deparei, ainda pelo vidro, com a chuva lá fora. Observei, ao vivo e a cores, o céu se fechando mais e mais e os trovões aparecendo. "Inferno, vai ser uma volta pra casa foda, mas que seja de uma vez pra passar logo", pensei. Dizia pra mim mesma "vas-y, vas-y" enquanto corria com as sacolas recicláveis pra fila do tram. Sobrevivi à metade. Saí do tram e peguei o ônibus pra subir pra casa. Mais uma corridinha et voilà, estou na frente do meu prédio. Me molho mais um bocado procurando a chave, mas entro sã e salva. Subo as escadas ainda carregada - para os que me conhecem, não preciso nem dizer que moro no último andar de um prédio sem escada, né... como sempre Murphy me perseguindo... - e, claro, o grand finale. Tropeço, desço de bunda os primeiros 5 ou 6 degraus que eu tinha subido dessa leva de degraus e comigo, evidentemente, tropeçam todas as mercadorias que eu havia comprado no mercado. Algumas caem os 5 ou 6 degraus como eu e outras continuam escada abaixo. Me levanto já puta da vida com esse tal de Murphy e começo a catar os itens, contando um por um. Um, dois, três, quatro... Dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois. Como a minha idade.
Peguei a última mercadoria no primeiríssimo degrau lá debaixo - diga-se de passagem, uma lata de leite condensado - e sentei nesse mesmo degrau, já sem pressa e toda molhada. Vinte e dois, como a minha idade. Já é alguma coisa, não é? Acho que talvez seja por isso que eu tenha ficado cada vez mais exigente com as pessoas que me cercam. Parei pra pensar nos meus anos e descobri que talvez eu não tenha anos o suficiente pra dar e vender por aí. É claro, sou muito nova ainda, mas já tenho um passado raso demais, não aceito mais futuro nesses moldes.
Me sinto então como quando estou comendo um dos meus doces preferidos. No começo, como igual a uma desesperada e, conforme a tigela ou prato vai se esvaziando, meu ritmo vai diminuindo, deixo de ser displicente com meu doce, agora curto pedacinho por pedacinho e saboreio por longos segundos na boca.
É que já não tenho tempo pra lidar com almas pequenas, com gente que é mais ego do que humanidade. Com brigas por postos, sucesso e poder. Já não tenho tempo. Não estou mais disponível para conversas intermináveis sobre cousa alguma - ou, ao menos, sobre cousa alguma que realmente importe. Não estou mais aqui para discutir ou assistir que discutam sobre a vida alheia, sobre quem fulaninho ou ciclaninho namorou ou deixou de namorar e como era o tal do relacionamento que existiu ou que, por um triz, não vingou. Apesar da mesma idade cronológica, mais e mais me vejo cercada por pessoas imaturas. Adultos imaturos.
Da mesma forma, já não tenho tempo pra excesso de pudor ou de suscetibilidade. Chega de melindres, cresçamos todos ou deixem-me os que nada têm a me acrescentar. Meu tempo tornou-se por demais escasso para "essa gente careta e covarde", como já diria Cazuza. Esse já entendia bem há muito tempo do que eu falo agora e, caridoso como só ele, pediu inclusive piedade pra toda essa gente com um gostoso de um blues.
Os tantos que me cercam - salvo as poucas e abençoadas exceções - não discutem conteúdos, ficam presos aos rótulos e passam a vida toda remoendo as mesmas questões e buscando o que não se pode ter. Gente que não muda conforme a lua, conforme as cores do dia, conforme à trilha sonora imaginária da cabeça. Ou melhor, gente que nem tem trilha sonora imaginária. Gente que não sente arte, que não tem arte nas veias. Mais uma vez roubando as palavras de Cazuza, gente que "não sabe amar, fica esperando alguém que caiba no seu sonho".
Minh'alma tem pressa e eu também. Eu quero conviver com gente humana, muito humana, creias de escrúpulos. Gente que ame seus escrúpulos. Falo de escrúpulos no bom sentido, em relação aos absurdos da vida, à falta de humanidade. E, ao mesmo tempo, gente sem correias ou que as deseje afrouxar cada vez mais. Abertas, artistas - seja de profissão ou só de alma, pouco importa o ofício.
Eu gosto é de gente que ri dos próprios tombos e que detesta ostentação. Gente terrivelmente mortal e consciente disso e que, por isso mesmo, escolheu viver. Afinal, não é pra isso que estamos aqui? Estou velha pra gente de mentira, eu quero é gente de verdade. É que meus pratos e vasilhas já estão no final, preciso degustar os meus doces com muita calma e sabedoria.
Pelo menos por hoje eu ainda tenho a lata de leite condensado que está na minha mão, né? A mercadoria número 22, como eu, e que deu lugar a essa epifania... hora de pegar as coisas e subir as escadas de uma vez porque as minhas roupas ainda estão molhadas e, como diria a minha avó, "isso é gripe na certa!"
Beautiful, amazingly beautiful... you really have such a rare and wonderful gift to take little mundane things and make them universal, special and even holy. I really loved this conto/poem (I think it is both). Never lose your scruples my friend.. I know you won´t. But sometimes, as you say, it is rare to find people with them...:-)
ResponderExcluirKeep writing, keep writin such amazing and magical words :-)
ps a little earlier tonight, I put a link on your fb to a poem i found - one of the few of the many poems I have read recently which touched me...:-)
I know I already told you, but I really liked this poem/conto.. keep writing, keep nurturing your amazing talent :-)
ResponderExcluirThis might be interesting to put as a note on your Facebook? :-)
ResponderExcluir