O
seu quarto tem esse mistério engraçado que de mistério nem tem tanta coisa
assim. É que a luz está acesa e, de repente, apaga. Sempre foi assim. Mas não
tenhamos pressa, pois minutos depois, sem regra alguma –pelo menos ao que nos
parece-, ela reacende. O tal do mistério provavelmente se dá por um simples mal
contato. Alguém não deve ter arrochado a lâmpada como ou tanto quanto deveria.
Provavelmente foi isso, mas eu gosto de acreditar que é algo a mais. Como se o
quarto tivesse vida. E eu realmente acho que ele tem um pouco, sabia? Cada
informação se complementa e nos ajuda a completar esse quebra-cabeça que é esse
cômodo onde você habita. As primeiras páginas de jornal pela parede, em linhas
retas. A cama gigante com uma tanga de tartaruga vermelha e amarela acima dela,
presa a outra parede. Os dois sofás, apertados no resto do espaço e
convidativos como só eles, distribuindo aconchego. A mesinha de centro com as
garrafas de dias atrás, os isqueiros e cinzeiros. E, claro, o resto do suco de
laranja natural. A tevê que mal funciona à esquerda da mesa e as duas, juntas,
tampando parcialmente a enorme janela que nos lembra que há um mundo lá fora. A
janela, no momento, disfarça essa sua função, escondida por uma cortina
laranja, bem bonita. E você, sentado no sofá à minha direita, com as pernas de
índio, portando um sorriso amigo, testa os isqueiros que estão a sua frente pra
ver se algum funciona. O primeiro, nada. O segundo arrisca soltar uma faísca,
mas decepciona. O terceiro, idem, mas o quarto funciona. Você então o acende
triunfante. Nessa hora, a lâmpada viva do seu quarto resolve apagar-se. Eu te
olho fixamente. A chama do isqueiro queima o seu cigarro. Você traga com
vontade, uma tragada daquelas há tanto ansiada. Prende, puxa e solta a fumaça
em pequenas bolas. A fumaça sobe e eu observo a sombra dela na cortina laranja.
É que você está brincando com o isqueiro agora e a sua chama, por sua vez, está
iluminando a cortina. Que bonita a fumaça subindo, no seu tempo, anestesiando
os nossos corpos, e todo o entorno. Eu me rendo ainda mais ao sofá, estou
prostrada. Meus dedos estão separados um dos outros, abertos, unidos ao tecido
que forra esse tal de sofá que, originalmente, ficava na sala. Que bom que
decidimos trazer pro seu quarto, fica bem melhor aqui. Você abandona o isqueiro
na mesa e sentimos a escuridão momentânea do ambiente. Eu respiro fundo e te
sinto, apesar de não nos tocarmos. Sorrio de boca e olhos fechados, mas de alma
aberta. Penso que esse deve ser o sorriso mais sincero, justamente esse sorrido
no escuro. Não passa pelas nossas mentes, quando sorrimos esse sorriso, a
intenção de mostrar para o outro que estamos felizes, satisfeitos, bem. Ele
nada vê, não temos luz. Nós nada mostramos, apenas somos. É aquele sorriso de
dentro pra fora, de quem sorri quase que por não resistir. O sorriso começa
pelo coração, passa pelas veias todas e sai pela boca, anônimo, livre. Não está
indo para lugar nenhum, ele simplesmente é, aqui e agora, sem olhares ou
julgamentos. Me sinto feliz. Sinto o imã nesse sofá, nessa casa, nesse bairro e
cidade. Sinto o imã que me puxa bem forte. Não tinha jeito, era pra eu ter
vindo, já nem imagino um outro roteiro. O que seria de mim sem a chegada
acompanhada de frio na barriga (e nas mãos; e nos pés; e no rosto; e na alma?).
Afinal, era inverno quando eu cheguei por essas terras. O que seria de mim sem
a solidão mais solitária de todas? Sem os beijos em mim mesma, debaixo dos
edredons? Sem a dificuldade da língua, da falta de toque e de violão? Sem a
estranheza de corpos, de clima e a ausência de miscigenação? O que seria de mim
sem o primeiro abraço sincero em dias tão frios, sem as primeiras confissões do
amigo, sem a língua materna proferida por ele que veio esquentar o meu coração?
E ainda, o que seria de mim sem elas, tão práticas e simplistas, sempre em busca
de uma festa e de um vinho bom? E, mais, sem aqueles que chegaram e me fizeram
sentir lar, carinho, afago, pele, apego, cabelo, apelo. O que seria de mim sem
eles? E as andadas, caminhadas, sozinha ou acompanhada. Longas, demoradas, de
volta pra casa, principalmente. Aquele momento pra pensar. Primeiro, eu ia agasalhada
e, depois, conforme foram passando os meses, os casacos foram sendo guardados
na mala, substituídos por finos Cardigans até que desaparecessem. E, ainda, o
que seria de mim sem as visitas? Tantas que me trouxeram um pouco de casa, de
lar. O riso do amigo antigo. O reconhecimento do outro e de mim. Tantas
histórias, tanta vida. Seguimos juntos, mais pra lá ou pra cá, mas sempre como
parte um do outro. E o que seria de mim, ainda, sem os cappuccinos nas
madrugadas na companhia do amigo-irmão que eu nem posso dizer que fiz, e sim
que reconheci, por essas terras francesas? Cappuccino esse regado por histórias
mil, sem roteiro, sem ordem, sem vez e, aparentemente, sem porquês. Mas tem
porquê em tudo. Ou
em quase tudo ou, pelo menos, em muita coisa. Será mesmo? E sem as
racionalizações inacabáveis, como eu ficaria? Certamente mais sã, mas também
mais vazia. E sem a ansiedade, sem o coração acelerado, sem o medo? E sem o
primo, seja por skype, por email, por mensagem, ou por telepatia até. E sem
ele, o que eu seria? E sem a dança, sem o corpo, sem o tempo pra puxar o ar e
piruetar? Sem as viagens, sem as voltas pra casa, sem as dores nas costas pela
mala pesada. O que seria? Sem o verão que foi chegando, sem os dias no parque
deitada na grama, sem a camaradagem. Sem o cabelo curtinho, sem o olhar
penetrante, sem o vestido vermelho. Sem as noites embriagadas, sem os livros
engolidos, sem as páginas rabiscadas. Sem os papéis acumulando, sem os números
atormentando, sem a saudade de casa. Sem os sonhos alucinógenos, sem as
interpretações ora tranqüilizantes, ora apavorantes, mas nunca desconsideradas.
Sem as aulas que me inspiraram, sem as madrugadas acordada repassando cada uma
das possibilidades. Sem a imaginação, sem a verdade, sem o sonho, sem tantos
adeus. O que seria de mim? Sem a sua barba embarassada, sem o riso solto do
outro, sem a tatuagem daquela. Sem a bicicleta de dia ou de noite. Sem as
descidas com o vento nos cabelos e no peito, sem a mão no freio. Sem as vistas
da cidade, sem as novidades, sem aqueles cantinhos. Sem o medo, sem os
resultados, sem as soluções. Sem seus envelopes que sempre traziam boas novas.
É que ele disfarça e só me anuncia o que me cura, nunca o que machuca. Sem a
falta do pai, sem a mudança do amigo, sem o tempo que nos separa uns dos
outros. E cava; cava fundo, nos deixando cheio de buracos, cicatrizes,
machucados. Sem a Itália, sem a pizza, sem o chianti. Sem o calor, sem a praia,
sem o bronzeado. Sem os cachos de cabelo dela, sem a risada gostosa, sem as
reflexões, sem o escrito no muro na piazza Santo Spirito. Sem nos perdemos, sem
nos encontramos, sem os anjos pela estrada. Sem as fotos dos pés, sem a calma,
sem as piadas. Sem os amigos preservados pelo tempo e distância. Sem a vista
pro mesmo palácio depois de dois anos. Sem o reencontro e sem o abraço. Sem as
cervejas no metrô, sem as conversas se poucas palavras e muito significado. Sem
as marcas da guerra da Bósnia que também marcaram a mim. Sem o narguilé, os
relatos e as marcas de bala nos prédios da cidade. Sem a mudança de casa, sem
as malas pesadas, sem a ansiedade no peito. Sem a arrumação sofrida, sem a
estranheza do momento. Sem a visita deles, sem os sofás abertos na sala com a
gente prostrado. Sem os engradados de cerveja quente e sem a geladeira para
gelá-los. Sem a fila de velovs, sem as escaladas de prédios e árvores. Sem os
ônibus noturnos, sem o incômodo na lombar, sem as passagens baratas. Sem as
informações na rua, sem os mapas mentais; sem as setas, sem as cabanas, sem o
wi-fi. Sem o cabelo vermelho, sem o abraço da mãe, sem o esforço, sem as
palavras de paz. Sem os mercados, sem os supermercados, sem os cartões-postais.
Sem os olhares, sem os filmes, sem as lembranças, sem os suspiros. Sem as
surpresas, sem os drinks, sem o italiano, sem as mãos atadas. Sem a volta pra
casa, sem o resmungão. Sem o show inesperado, sem correr abraçadas, sem o
prosecco do bom. Sem aniversário, sem a toca de jazz, sem ela feliz. Sem a nota
que toca, sem a vontade de dançar, sem o francês cantado, sem. Sem a despedida,
sem o tramway solitário, sem o soluçar. Sem as brasileiras verde-e-amarelas, sem
o feijão preto, sem plantar bananeira. Sem a simpatia alheia, sem a sorte
grande, sem essa missão. Sem eles, sem a fumaça, sem união. Sem MPB, sem samba,
sem zaz, sem batidão. Sem batucada, sem bagunça, sem bordel, sem alienação. Sem
beber no quai, sem amigos, sem abraço, sem vinho barato. Sem risada, sem coloc,
sem festa, sem baseado. Sem bolo de chocolate, sem maldade, sem saudades nem
novidades. Sem planos. Sem separação, sem divisão, sem “por que nós?”. Sem a
carta da vó, sem choro, sem lembrança. Sem pressão, sem motivação, sem fita
métrica. Sem vontade, sem boca, sem cafuné, sem palavrão. Sem dicionário, sem
armário, sem armadura, sem porão. Sem contagem regressiva, sem frio na barriga,
sem vento na cara. Sem volta do inverno, sem cinema, sem marca na cara. Sem
sinceridade, sem riso engasgado, sem turbante. Sem escada, sem degraus, sem
olhar pra frente, sem um de cada vez. Sem conquista, sem chegada, sem volta,
sem palavra, sem vestígio, sem tatuagem, sem início, sem vadiagem. Sem postura,
sem pintura, sem obra-de-arte. Sem cultura, sem teatro, sem balé, nem pé. Sem
pé nem cabeça, nem sentido. Sem desenho pendurado pela casa, sem mistério, sem
quase nada. Sem porquê, sem limite, sem máscara, sem maquiagem. Sem cara limpa,
sem corpo, sem vontade. Sem perigo, sem sexo, sem coxa, sem apelo. Nem nuca,
sem olhos nos olhos, sem perdão, sem resposta, sem outra vez. Sem mistura, sem
assombro, sem arte, sem ilusão. Sem tempo, sem piada, sem calma, sem
crescimento, sem união nem transformação. Sem Lyon, sem cada um de vocês, sem
nós, sem meu, sem eu.
What a poem, what a poem... mind blowing. I think I will have to leave you on hundred comments to say what I have to say about it.. Well, not one hundred, just a few!!! I like all your poems, but every so often you write such amzing ones, and this is definitely one; What can I say about it? You always open yourself in you poems, - one of the things I like about them, I am able to read yur mind in a way, a reader-therapist-observer-listener. I can feel your emotions, read your feelings, (and feel close to you, which is important my friend, as we are thousands of kilometers distant). But in this one, you open so much.. it just kind of swallows me (and others, I am sure), it is a wonderful, sad, happy, warm, and cold journey (I can feel the cold wind, so well... I know it too well from the past).
ResponderExcluirI sent you a message recently on whatsapp, though I dont know if you saw it, asking you about France and what you would miss... I think you answered here!!! Wow!
Something else I thought of when reading it. In it you mention your lonlieness (a solidão mais solitária de todas), it made me think that this is something we both know too well, in different ways of course, but I think it is something which ties us together (I hope I am not being too crazy here). I also hope that part of me is in this poem!!! :-)
It is just amazing, I will have to read it several more times to properly digest it!
Keep writing!!!