vivo atormentada pela urgência de escrever sobre minhas ausências, cenas do passado se anunciam diante dos meus olhos interiores e sinto-as como se eu fosse feita de pele por todo o meu interior, e os poros dessa pele real, imaginária e simbólica simultaneamente (o psíquico) permite que uma cena chame outra, que chame outra, que chame outra, e tantas estórias ensaiam começos ali diante de mim, pequenina — frases inaugurais chegam a ser decretadas: agora sim, este será o início do livro dos amores que me constituem, que me carregam até o banheiro de manhã para que eu escove os dentes e lave a cara para começar um novo dia estranhamente parecido com o dia de ontem e assim por diante, dez mil novecentos e cinquenta vezes mas tudo isso se passa em uma velocidade tão, mas tão veloz que as cenas que haviam vindo até mim tão nítidas de repente se perdem — e, de novo, já não sei mais contar essa história.
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que amor eu quero honrar se todos eles vieram da mesma semente, da mesma origem e, ao mesmo tempo, cada amor é tão singular e, portanto, os amores são todos absolutamente incomparáveis um com o outro, pois cada um é inteiro e furado dentro de seu próprio destino ? — pois os amores estão sempre entrelaçados, os nossos e os dos outros, os nossos e os que nos antecederam e os que nos sucederão.
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e digo mais: como contar dos amores se amor é apenas uma das faces da encrenca ? já que todo amor tem como vizinhos do ódio à pena, passando pela compaixão, pela inveja, pelo medo, pela gula, pela calmaria e, logo ali no horizonte, pela indiferença.
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e por que dessa minha mania de tanto querer dizer se eu sei ser a palavra tão limitada, um simples contorno parcial e limitado que morre logo que é declarada ? a palavra, criada por não suportarmos o dizer do silêncio ? — o silêncio, aquele que fica fora do plano das formas dadas, e que fascina porque não representa nada, nem nada o representa, manifestando-se apenas na energia irradiante que dele irrompe.
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disse yves klein: "no coração do vazio, há fogos que queimam" — perante o vazio, estou só, de uma solidão que me arranca para fora de mim, uma solidão povoada de presenças ausentes, de amores insuficientes, de sonhos impossíveis, de perdas irremediáveis, de enredos inviáveis.
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me veio uma cena e, dessa vez, escrevo-a — um dia eu li um livro daquelas que machucam e acolhem, daqueles dos quais sinto uma inveja tremenda porque queria demais que tivesse sido eu a autora, mas ao mesmo tempo me reconheço incapaz de realizar uma proeza à altura e, logo em seguida, sinto-me grata pela vida daquele autor e por todos os acasos e destinos que o fizeram escrever aquelas palavras tão urgentes em mim, e sinto-me grata a mim mesma por todas as minhas intercorrências, preguiças, paixões e loucuras que também me levaram a chegar até aquelas páginas e viver aquele aconchego tenebroso de se ler um chamado necessário e transformativo, e sentir a tempestade interna causada pelos desbloqueios que eu pude acionar em mim, transmutando vidas inteiras que vivi, estavam mortas e se decompondo dentro de mim, de repente passam de masmorras assombradas a cinzas cintilantes e tocam em tudo que é vivo nesse instante — nesse caso, as páginas eram de um livro do safatle onde ele reinvidicou que saltar no vazio pode ser o único gesto necessário.
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a frase e o manifesto que a sucedeu me foi tão intrigante que precisei bolar um projeto de mestrado, entrar no mestrado, cursar o programa e, ao final, escrever uma dissertação de cento e quinze páginas onde eu tentei falar de milhões de coisas e acabei não falando de quase nada (porque é isso que a palavra acaba fazendo com a gente na maioria das vezes, nos colocando em espirais infrutíferas que nos fazem desperdiçar o tempo, simplesmente o tecido de nossas vidas) — mas que cisma louca é essa senão uma tentativa de revisão pressagiada que quer tornar palpável a presença dos que estão para sempre longe demais, muito embora nos sejam tão íntimos ?
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e o que saltar no vazio tem a ver com tudo isso, já que eu digo e me distancio cada vez mais de onde eu quero chegar ? — é preciso estender a função da arte à vida e encarar o vazio e o silêncio para aguçar os sentidos e poder perceber o quanto estamos o tempo inteiro passando da impotência ao impossível, pois o vazio nunca foi nem será inerte: ele é apenas o lugar no qual não encontramos nada, e o impossível é tão-somente um regime de existência de tudo aquilo que não acreditamos poder se apresentar na atual situação em que nos encontramos — e compartilho com vocês aqui a cereja do bolo com a qual o safatle finaliza o capítulo do seu livro (uma frase perfeita que me causa, em primeiro lugar, inveja e, em segundo lugar, gratidão (sentimentos aparentemente muito diferentes, porém também aparentados)): "[o impossível] é o lugar para onde não cansamos de andar, mais de uma vez, quando queremos mudar de situação. Tudo o que realmente amamos foi um dia impossível".
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fico em silêncio, penso se esse texto acabou, se esse texto existe, se é um monte de merda e se eu deveria deletá-lo, penso no emaranhado de palavras que eu estou escrevendo há quarenta minutos ou talvez há uma hora e sinto um arrepio no cóccix que me sinaliza a deixar as palavras em paz, palavras que acenam para todas que eu já fui e para todos que eu carrego em mim, até mesmo em minhas regiões que nem eu mesma alcanço.
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viver é viver povoado e povoando, sempre prestes a morrer — nada se apaga, tudo se acaba e as ausências nos levam pelas mãos, nos observam à noite insones ou desmaiados de sono, nos convocam a ocupar, inventar, criar e mudar incessantemente, nos obrigam a enxergar a necessidade de tomarmos uma decisão e a tomá-la logo em seguida (ainda que a decisão seja não decidir e perder por w.o.), nos espiam nos primeiros suspiros em cada início de um novo amor que virá ressignificar todos aqueles que nos trouxeram até aqui.
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cada um de nós terá seu próprio fim — até lá, que o impossível nos surpreenda.
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