E tudo terminou comigo nesse avião me dando conta que essa
experiência me transformou para sempre. A princípio, hoje foi um dia comum,
comigo jogando o jogo da vida no modo “hard”. Ontem eu havia me despedido de
Lyon e de alguns bons amigos; passeei pela cidade à noite voltando pra casa
pela última vez. Passei pelos pontos principais, os quais eu tantas vezes
freqüentei. E as lembranças me trouxeram paz. E saudades, essa palavrinha que
não pode ser exatamente traduzida pro francês. Só a gente que entende. As
saudades futuras já estavam desenfreadamente se instalando no meu peito.
Resolvi respirar fundo, dar a mão para o João, um dos queridos amigos que eu
tive o prazer de fazer pelo caminho, e continuar adiante. Chegando em casa, o
Theo, um francês que surgiu como meu aluno de português, mas logo virou um
parceiro, foi me visitar para se despedir. Conversamos um pouco sobre o que eu
estava sentindo; ou melhor, sobre o que eu não estava nem conseguindo sentir,
eu mal acreditava que ia voltar. Ele me contou um pouco da volta dele do Togo,
onde ele morou por um ano. Falou sobre como a readaptação foi difícil. Olhou
nos meus olhos. Riu. O rosto dele estava cansado, pois ele não dormia há dias
por causa do trabalho. Eu também não dormia há dias, mas porque não podia
acreditar que estava realmente acabando... Meu ano na França acabou.
Ele acabou dormindo lá em casa: apagou rapidinho. Eu, nem
tanto. Devo ter dormido 2 ou 3h. Acordei com o despertador dele e impaciente
para acabar de arrumar as coisas e me ver livre disso. Mas antes uma coisa:
Desci e fui pegar uma encomenda que eu tinha feito pela internet com alguns
presentes (pro meu irmão, pra minha tia e pra uma grande amiga). Eram uns
quadrinhos de uma pintora. Eu havia pedido na segunda-feira passada, dia 16, e
antes de pagar eu liguei pro site pra perguntar em quantos dias encomenda ia
chegar, pois sei que Murphy tem uma atração inegável por mim e quis evitar
problemas. Me disseram 2 ou 3 dias, o que significa que chegaria 4ª ou 5ª
feira. Mas hoje é segunda-feira de novo e a encomenda ainda não tinha chegado.
Não pude acreditar. Eu iria voltar pro Brasil sem presentes pro Natal e ainda
teria que arrumar alguém pra ir pegar a encomenda e levar pro Brasil em
seguida.
Resolvi respirar, eu não podia me estressar. Fui no mercado
e comprei um espumante pra abrir amanhã com a família. Depois passei no “Paul”,
a boulangerie que fica perto lá de casa, e comprei meus últimos croissant e
pain au chocolat desse meu ano à la française. Levei um pain au chocolat pro
meu coloc, Aymeric, porque sei que ele gosta muito. Ele sempre tentava – e
conseguia, já que eu não sei dizer não – roubar uns de mim.
Então, continuei a arrumar o meu quarto. Consegui me livrar
das tralhas da mesa, tirei as fotos da parede e a poeira do chão. Joguei fora
também aquele espelho que eu e alguns amigos achamos na rua uns meses antes e
resolvemos levar pra casa, mas que quebrou no caminho porque 2 desses amigos
tiveram a brilhante idéia de deixar o espelho na cesta da velov enquanto os 2
dividiam a bike. Lembrei desse grupo querido, que está no Rio e que devo
encontrar em breve. Que coisa doida.
Depois disso, o Aymeric me disse que achava que não poderia
me acompanhar à Gare Part-Dieu, a estação de trem onde eu pegaria o TGV pro
Charles de Gaulle, já que o meu avião sairia de Paris. O motivo é que ele
estava esperando uma ligação da ex-namorada que foi morar na Austrália. Nem
acreditei. Eu ia embora depois de morar 6 meses com ele e tinha 2 malas de mais
de 30kg cada e uma mochila com mais uns 10. Respirei mais uma vez e disse que
não tinha problema.
Voltei pro quarto e escrevi uma carta pra ele. Nesse
momento, relevei todos os aspectos negativos da coloc e fui muito carinhosa,
como me é de costume. Escrevi também pro meu outro coloc, Guillaume, dessa vez
um pouco menos intensa.
Arrumei as minhas coisas e fui me despedir. Deixei com ele
ainda um resto de haxixe que eu encontrei no meu quarto e uma lixeira do Che
Guevara, que eu havia herdado de outra amiga uns meses antes. Ele olhou a
quantidade de malas e perguntou se eu tinha certeza que não precisava de ajuda.
Eu disse que não. Meu orgulho, maldito, não me deixou aceitar. Já estava
magoada por ele ter deixado de me acompanhar por causa de uma ligação que
poderia muito bem ter sido feita depois. O problema da mala era o de menos.
Ele me ajudou a colocar as malas no elevador, eu entreguei a
carta e dei um abraço apertado. Chorei um bocado, mas achei que seria pior.
Entreguei a chave do nosso apt e a porta do elevador se fechou escondendo
aquele sorriso simpático e acolhedor desse francês tão querido com quem eu pude
dividir alguns muitos bons momentos.
Em seguida, o drama começou. Tirar as malas do elevador já
foi bem difícil, mas chegar até o ponto do bonde (tram) me parecia impossível.
Num momento que eu já estava sem forças, escutei aquela pergunta mágica tão
difícil de se escutar em terras francesas: “Est-ce que je peux vous aider?”.
Agradeci muito e o cara e o seu pai se ocuparam das minhas malas até o ponto do
tram, me deixando só com a mochila. Pegamos o tram juntos. Eles iriam até a
Guillotière e eu continuaria até a Part-Dieu torcendo pra ter sorte por lá
também. Nesse meio tempo, me falaram que eram da Colômbia e eu disse que estava
voltando hoje para o Brasil. Eles já moram em Lyon há 3 anos. Eu disse que tive
um ano incrível por ali e mencionei também que a minha avó não sabe que eu to
voltando pro natal. Eles se animaram com a minha animação. Sorriram. Me
desejaram uma boa viagem e saíram pela porta do tram. Eu fiquei olhando para as
minhas malas, pensativa, pensando na influência das pessoas sobre a cidade e
vice-e-versa.
Logo, cheguei à estação. Estava bem cheia e eu mal conseguia
passar com as malas, tinha que parar o tempo todo e já estava um pouco
estressada. Conferi a plataforma do trem e já fui me dirigindo pra ela. Subi as
escadas rolantes segurando as malas e olhando a part-dieu, por onde eu passei
por incontáveis vezes. Me veio à lembrança quando eu me despedi do Tomás por
essas plataformas, um dos grandes personagens desse ano pra mim, um dentre os
tantos amigos brasileiros que descobri por essas terras. Foi no início de
agosto. Percebo como a minha noção de tempo está cada vez se afastando mais do
tempo cronológico. Eu não só escrevo em tempo psicológico, como sinto e vivo
nesse tempo. E, ao mesmo tempo que parece que agosto voou e que na verdade isso
tudo aconteceu há um mês atrás, consigo ver tudo que eu construí de agosto até
agora, superando as minhas próprias expectativas, uma vez que, acompanhando a partida de
vários amigos meus, acreditei também que eu já não construiria mais muita coisa.
O trem chegou e com muita dificuldade eu consegui subir as 4
escadinhas com as 2 malas, mas eu não achava espaço pra elas. Acabei enfiando a
mochila num cantinho e deixando as malas no meio das passagens, uma na passagem
à direita de onde eu tava sentada e a outra, à esquerda. Sentei com calma,
finalmente. Na minha frente, estava um jovem da île de la réunion que mora no Canadá. Aproveitei
pra gastar mais um pouquinho do meu francês antes de partir. Ele falou que
adorava música brasileira e ele realmente conhecia bastante coisa. Recomendei
outros cantores que ele não conhecia e escutamos algumas do meu ipod. Conversamos
e rimos um pouco. Ele também estava indo para o Charles de Gaulle. Pedi ajuda
na saída, pois eu não tinha muito tempo pra tirar as malas e cada uma tava num
canto. Ele se prontificou em me ajudar, mas eu não conseguia passar para o lado
oposto que ele foi porque o corredor tava lotado. Saí então pelo mesmo lado,
tiramos uma das malas e entrei no trem novamente pela outra porta para
recuperar a mochila e a outra mala imensa. O trem tava quase saindo, já que
continuaria até Lille, e as pessoas que estavam entrando estavam super
impacientes comigo, mas falando alto e os empurrando um bocado eu consegui sair do
trem milisegundos antes das portas se fecharem e o meu recém-amigo estava me
esperando com a minha outra mala do lado de fora. Achamos um carrinho pras
malas, subimos o elevador, trocamos emails e nos separamos porque eu precisava
ir pra outro terminal. Mas, antes disso, tiramos uma foto juntos para ficar na
memória.
Eu que achava que com o carrinho já tinham acabado os meus
problemas percebi que ele não poderia passar para o outro terminal, então foi
mais um perrenguezinho chegar até ele. Chegando lá, quis pegar o tax free, mas
a fila tava enorme e eu ia ter que esperar no mínimo uma hora. Coloquei na
balança e o dinheiro que eu receberia não pesou tanto. Então, fui pesar minhas
malas. 1ª: 40,5 kg .
2ª: 35 kg .
Mala de mão: 10 kg .
Putain.
Eu tinha direito a 2 bagagens de 32 kg , mas como me livrar de
mais de 10 kg? Abri as malas e comecei a jogar fora tudo que eu não fazia
questão. Tênis e bota que já estavam em estado de petição de miséria e, pela
peneira da minha mãe, já era pra eu ter jogado fora há muito tempo. Papéis, papéis,
papéis.
Tirei uns 4 casacos pra vestir, enxutei uns 16 livros na
minha bolsa (não na bagagem de mão, na bolsa mesmo) e todo o resto na minha
bagagem de mão, a qual eu esperava que não me pesassem. Resultado: primeira
mala com 31,8, segunda mala com 31,7 e eu com 5 casacos e cachecol num calor da
porra – apesar do inverno de fora, no aeroporto tava bem quente. Minhas costas
começaram a doer, mas tomei coragem e fui despachar as minhas malas. De cara,
pediram pra pesar a bagagem de mão. Descobri que, a princípio, eu tinha direito
a 5 kg e
que eu tava com 15. A
moça me pediu pra me livrar de algumas coisas pra alcançarmos 10, que aí ela
deixaria passar. Eu tirei o computador e a câmera e deixei num saco separado.
Vesti mais um casaco e pesei de novo. Ainda 12kg. Eu disse que ia vestir tudo e
ela teve pena. Eu disse que depois de um ano é bem difícil respeitar esses limites
de peso. Ela foi gente boa e deixou passar, mas quand même tava super difícil
andar com aquele peso todo. Depois ela ainda quis me dizer que eu tinha direito
a 23kg, mas isso só se você compra a passagem da Europa. Se você compra ida e
volta do Brasil, também tem direito a 2 de 32 na volta. Ela ligou para alguém
para confirmar que era realmente a minha volta porque a minha reserva estava
zuada desde o meu vôo de ida por culpa da incompetência da empresa onde ela
trabalha, mas isso é uma história pra depois – embora tenha acontecido no
começo (eu já disse que o meu tempo é psicológico). Consegui me livrar das
bagagens grandes e fiquei sofrendo com a menor, a bolsa com uns 5kg ou mais,
lotada de livros, e o saco com o computador e a câmera. Foi uma pena eu não ter
despachado mais uns quilinhos. Embarquei, passei pela polícia, tive que tirar
tudo da mala e recolocar de novo e cheguei, enfim, ao portão de embarque número
16. Faltava 1h. Sentei com as minhas companheiras malas e fiquei falando com
alguns amigos e com a minha mãe pelo whatsapp. É amanhã que vou vê-los. Amanhã.
Depois de um ano.
Entrei no avião, achei um lugar lá na frente pra minha
mochila e deixei todo o resto aqui no chão comigo, do lado dos meus pés. O sono
do dia inteiro foi embora. Dei à bientôt aos meus amigos quando eu ia decolar e
desliguei o celular. Comecei a ver uns filmes. Primeiro comecei a ver um do
Woddy Allen, mas depois percebi que eu queria uma comédia bem bobinha, era o
momento. Achei uma comédia romântica idiota e assisti. Depois vi um filme
(Stuck in Love) sobre uma família em um ano complicado pra cada um dos
personagens. Terminei o filme chorando horrores, já nem sabia porque. Não foi
pelo filme. Foi porque acabou. Não tinha nada a ver com o filme.
Fui ao banheiro e tentei secar minhas lágrimas, mas elas
insistiram em continuar caindo. Voltei pro meu assento e o cara a 2 poltronas
de mim perguntou se eu tava bem. Eu respondi que sim, mesmo ele tendo percebido
que not at all. Lyon me manque déjà.
Peguei o computador e comecei a escrever tudo que me viesse
à cabeça. E agora eu to pensando: como explicar o que foi esse ano pra mim? Como passar pro papel tudo isso?
Tudo começou quando eu peguei o vôo de ida. Não, começou
muito antes. Começou quando o meu primo me convenceu a fazer intercâmbio. Ou
ainda quando eu comecei a estudar francês. Ou ainda quando eu, desde pequena,
dizia o quanto eu queria aprender francês e ir pra Paris. Ou ainda quando meus
pais escolheram o meu nome, o único nome feminino com o qual acordaram:
Gabrielle. Avec 2 L.
Não importa o que exatamente determinou que eu viesse pra
França. Tudo determinou, as coisas não são assim divisíveis como parecem, é
tudo influência e o passado ainda ta na gente, latente, assumindo outra forma a
cada dia, se adaptando às nossas mudanças conforme elas apareçam.
O que importa é que eu não estava feliz, muito pelo
contrário. E encontrei nessa cidade, nessa experiência muito mais do que eu
jamais pensei que poderia.
Pude escutar o meu coração, sentir meu sangue circular pelo
meu corpo, sentir cada pedacinho latejar. Permaneci imóvel. E, diante de todas
essas sensações que eu me permiti sentir, pude perceber que, por vezes, as
palavras não são suficientes. Respirei, me acalmei e decidi deixar o texto interminado.
Não toquei mais nele e aqui ele está, como registro oficial de tudo o que eu
pude colocar em palavras durante o vôo.
Absolutely amazing. Wonderful... You have a brilliant book in you, mixing biography, psychology, and intimacy (amongst other things). I can´t wait to read it.)
ResponderExcluirYour poems are excellent (and I miss them), but your recent posts are revealing new talents, which are always great to discover... Keep writing my friend!