sábado, 28 de novembro de 2020

Palavras mortas

Sinto-me grávida de palavras mortas. Não as parri a tempo e elas apodreceram dentro de mim e tomam meu corpo e meus espaços como que uma metástase de palavras perdidas. São feitas de tudo aquilo que eu não escrevi e agora virou infecção e entope continuamente os meus poros e artérias, de tudo aquilo que eu necessitava ter parrido nos momentos em que as bolsas d'água estouraram, mas eu retive. Neguei-me a parir e fiquei como que mijada, sentindo-me ínfima e humilhada por mim mesma, tragada pela sedutora onda da depressão que herdei de minha mãe, que me convida a entregar meu corpo á cama,a rarear a minha respiração, a atuar para mim mesma e me enganar e me enfraquecer histericamente, a afundar meus braços e pernas no colchão, a concentrar-me dedicada a todos os pontos de dor do meu corpo, de forma que eles se tornem mais agudos para que eu possa sentí-los me ameaçando a cortar-me por dentro, mais uma vez, rompendo — fácil, fácil como um sopro despretencioso, como um ventinho que leva o chapéu de palha para longe da canga nas areias da praia — com minha última configuração precária de remendo para os pedaços cortados que eu carrego do lado de dentro. 

Por vidas, fui aquela mulher perseguida por um homem agridoce a quem ela seduzia horas antes no balcão do bar. Eu entrava nas noites como quem está atrás de perigo, não sei se buscando convencer-me de que eu realmente não tenho solução, —  de que sou ferrada da cabeça por sempre me meter nos mesmos becos assombrados, logo eu deveria mesmo aceitar ser violada, física e simbolicamente (estruprada, humilhada, silenciada, chamada de louca e dramática, culpabilizada) e, quem sabe, se eu aguentar ser dócil em alguns momentos eu até consiga despertar um pouco de compaixão desse sujeito que me come ora sem me olhar nos olhos ora me fitando e vendo outra que não eu (vendo uma coisa, um objeto, ou vendo uma dama ou uma puta quando essas figuras são meras vestimentas facilmente disponíveis para a uma mulher-atriz lançar mão) — ou se, ao contrário, procurava alguém que fizesse tudo isso comigo para, no final, quase sem querer, me enxergasse ali naquele instante, vislumbrando minhas tempestades e tendo notícias em seu próprio corpo da dor que me corrói por dentro e me faz querer rasgar as roupas que envolvem minha pele e correr pelada pelas ruas por horas a fio, desertas ou não, com ou sem carro, bueiro destampado, beco sem saída ou mar revolto, até alguma tragédia que viesse de fora me acometesse ou até eu não aguentar mais e zerar a minha energia vital a ponto de cair dura no asfalto ou em qualquer outro lugar aonde a loucura pudesse ter me levado. 

A dor era tanta que só mesmo inventando performaces que fizessem menção à ela, como que em sua homenagem: eu, amante da dor, aquela que reconhece o seu valor em minha carne e em tudo o que eu fazia (e em tudo que eu deixava de fazer), sempre a partir dela.  

Por vidas, a dor ditou meus passos e me fez buscar parceiros que me machucassem ainda mais profundamente, adicionamendo novas camadas de dor erotizada à uma mulher jovem e aparentemente cheia de vida, porém masoquista. 

[E essa parte de mim ninguém via].


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(...Continua em algum momento,

pois escrever para mim tem sido como uma quimioterapia para tratar a metástase das palavras perdidas.

Após cada sessão, um período de recuperação).


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o vazio povoado dos amores ausentes que habitam meu corpo vivo que no futuro morrerá


vivo atormentada pela urgência de escrever sobre minhas ausências, cenas do passado se anunciam diante dos meus olhos interiores e sinto-as como se eu fosse feita de pele por todo o meu interior, e os poros dessa pele real, imaginária e simbólica simultaneamente (o psíquico) permite que uma cena chame outra, que chame outra, que chame outra, e tantas estórias ensaiam começos ali diante de mim, pequenina — frases inaugurais chegam a ser decretadas: agora sim, este será o início do livro dos amores que me constituem, que me carregam até o banheiro de manhã para que eu escove os dentes e lave a cara para começar um novo dia estranhamente parecido com o dia de ontem e assim por diante, dez mil novecentos e cinquenta vezes mas tudo isso se passa em uma velocidade tão, mas tão veloz que as cenas que haviam vindo até mim tão nítidas de repente se perdem — e, de novo, já não sei mais contar essa história.

. . .

que amor eu quero honrar se todos eles vieram da mesma semente, da mesma origem e, ao mesmo tempo, cada amor é tão singular e, portanto, os amores são todos absolutamente incomparáveis um com o outro, pois cada um é inteiro e furado dentro de seu próprio destino ? — pois os amores estão sempre entrelaçados, os nossos e os dos outros, os nossos e os que nos antecederam e os que nos sucederão.  

. . . 

e digo mais: como contar dos amores se amor é apenas uma das faces da encrenca ? já que todo amor tem como vizinhos do ódio à pena, passando pela compaixão, pela inveja, pelo medo, pela gula, pela calmaria e, logo ali no horizonte, pela indiferença.

. . . 

e por que dessa minha mania de tanto querer dizer se eu sei ser a palavra tão limitada, um simples contorno parcial e limitado que morre logo que é declarada ? a palavra, criada por não suportarmos o dizer do silêncio ? — o silêncio, aquele que fica fora do plano das formas dadas, e que fascina porque não representa nada, nem nada o representa, manifestando-se apenas na energia irradiante que dele irrompe.

. . . 

disse yves klein: "no coração do vazio, há fogos que queimam" perante o vazio, estou só, de uma solidão que me arranca para fora de mim, uma solidão povoada de presenças ausentes, de amores insuficientes, de sonhos impossíveis, de perdas irremediáveis, de enredos inviáveis.

. . . 

me veio uma cena e, dessa vez, escrevo-a — um dia eu li um livro daquelas que machucam e acolhem, daqueles dos quais sinto uma inveja tremenda porque queria demais que tivesse sido eu a autora, mas ao mesmo tempo me reconheço incapaz de realizar uma proeza à altura e, logo em seguida, sinto-me grata pela vida daquele autor e por todos os acasos e destinos que o fizeram escrever aquelas palavras tão urgentes em mim, e sinto-me grata a mim mesma por todas as minhas intercorrências, preguiças, paixões e loucuras que também me levaram a chegar até aquelas páginas e viver aquele aconchego tenebroso de se ler um chamado necessário e transformativo, e sentir a tempestade interna causada pelos desbloqueios que eu pude acionar em mim, transmutando vidas inteiras que vivi, estavam mortas e se decompondo dentro de mim, de repente passam de masmorras assombradas a cinzas cintilantes e tocam em tudo que é vivo nesse instante — nesse caso, as páginas eram de um livro do safatle onde ele reinvidicou que saltar no vazio pode ser o único gesto necessário.  

. . . 

a frase e o manifesto que a sucedeu me foi tão intrigante que precisei bolar um projeto de mestrado, entrar no mestrado, cursar o programa e, ao final, escrever uma dissertação de cento e quinze páginas onde eu tentei falar de milhões de coisas e acabei não falando de quase nada (porque é isso que a palavra acaba fazendo com a gente na maioria das vezes, nos colocando em espirais infrutíferas que nos fazem desperdiçar o tempo, simplesmente o tecido de nossas vidas) — mas que cisma louca é essa senão uma tentativa de revisão pressagiada que quer tornar palpável a presença dos que estão para sempre longe demais, muito embora nos sejam tão íntimos ?

. . . 

e o que saltar no vazio tem a ver com tudo isso, já que eu digo e me distancio cada vez mais de onde eu quero chegar ? — é preciso estender a função da arte à vida e encarar o vazio e o silêncio para aguçar os sentidos e poder perceber o quanto estamos o tempo inteiro passando da impotência ao impossível, pois o vazio nunca foi nem será inerte: ele é apenas o lugar no qual não encontramos nada, e o impossível é tão-somente um regime de existência de tudo aquilo que não acreditamos poder se apresentar na atual situação em que nos encontramos — e compartilho com vocês aqui a cereja do bolo com a qual o safatle finaliza o capítulo do seu livro (uma frase perfeita que me causa, em primeiro lugar, inveja e, em segundo lugar, gratidão (sentimentos aparentemente muito diferentes, porém também aparentados)): "[o impossível] é o lugar para onde não cansamos de andar, mais de uma vez, quando queremos mudar de situação. Tudo o que realmente amamos foi um dia impossível".

. . . 

fico em silêncio, penso se esse texto acabou, se esse texto existe, se é um monte de merda e se eu deveria deletá-lo, penso no emaranhado de palavras que eu estou escrevendo há quarenta minutos ou talvez há uma hora e sinto um arrepio no cóccix que me sinaliza a deixar as palavras em paz, palavras que acenam para todas que eu já fui e para todos que eu carrego em mim, até mesmo em minhas regiões que nem eu mesma alcanço.

. . .

 viver é viver povoado e povoando, sempre prestes a morrer — nada se apaga, tudo se acaba e as ausências nos levam pelas mãos, nos observam à noite insones ou desmaiados de sono, nos convocam a ocupar, inventar, criar e mudar incessantemente, nos obrigam a enxergar a necessidade de tomarmos uma decisão e a tomá-la logo em seguida (ainda que a decisão seja não decidir e perder por w.o.), nos espiam nos primeiros suspiros em cada início de um novo amor que virá ressignificar todos aqueles que nos trouxeram até aqui.

. . . 

cada um de nós terá seu próprio fim — até lá, que o impossível nos surpreenda.


quinta-feira, 27 de junho de 2019

faz um tempo que eu não brinco com as palavras
que não venho aqui dizer qualquer coisa,
por mais troncha e boba que seja

acho que por vezes a Academia faz isso com a gente
quero dizer, com alguns de nós...

atenção!
o mestrado pode fazer mal à saúde dos corpos:
dos dedos que escreviam e passam a sentir-se engessados
dos pés que saltavam e agora sentem-se fracos e doloridos
do sexo que fica seco diante dos prazos
dos amores que urgem por viver para além da manutenção dos protocolos




investigo meus fantasmas como um detetive que se sabota continuamente: tenho dicas e prelúdios, abro portas e janelas, imagino palavras e narrativas e sufoco tudo isso, entulho de fazeres e escutas carregadas que desoxigenam a mim e ao meu entorno.

onde começa uma história? há meses, tento colocar algo no papel. chamo de papel essa merda desse blog, lugar virtual e meio-totalmente ilusório onde eu falo para ninguém com uma esperança covarde de alguém me perceber em meio às nuvens. 

eu lembro de memórias que me soam afetivamente aleatórias, mas eu bem as sei que não. sei que elas são pequenos feixes, pequenas brechas, para que algo possa nascer. 

mas como deixar nascer algo de mim? como não ser uma kamikaze? como não assassinar tudo e a mim também? 

embora meia e volta eu busque saber sobre grávidas e sobre suas experiências pessoais, acho que não me suporto grávida - nem em pensamento.

nem sei se eu dou conta de viver a minha vida sem virar um transtorno para os vivos. será que eu posso ser amada sem ser necessária?

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Tempo, espaço e arrepio


"Alice: Quanto tempo dura o eterno?
Coelho: Às vezes, apenas um segundo."
(Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll)

Ela, afoita, vive correndo de um lado pro outro. E eu, recorro ao recurso da utilização da terceira pessoa em vez da primeira porque, por vezes, tenho necessidade de me afastar de mim mesma para historicizar as invasões que o mundo imprime em minha carne. Do contrário, eu as perco. Elas se vão, escorrendo pelos ralos da cidade, dos apartamentos; escorrendo pelas paredes e pelas fachadas bonitas e feias, renovadas e abandonadas; se esvaem pelos rios e mares, ou simplesmente evaporam nos céus; ou, ainda, tornam-se poeira, graxa, petróleo, mausoléu. É urgente que eu não perca as inscrições, não de novo, não mais uma vez. Eu, que sempre deixo tudo passar; que, a despeito de tanto sentir, tanto sofrer, mantenho-me inerte tantas vezes: deitada, apática, sem encontrar meios de me mexer. Me mexer para onde?, essa é a pergunta de fundo que me atormenta e me mantém apagada, em cima do muro. Canso-me de meus impasses. Há momentos que os resolvo num triz e vejo com tal força: enxergo e sinto desde naves cintilantes, a amores incandescentes; vejo e sinto a magia transparente por detrás de palavras que me dizem tanto. Me vem um desejo louco de escrever e inscrever toda a experiência em um folha, em uma árvore qualquer, em um corpo alheio, para que essas ainda-não-palavras não morram comigo, em mim, ocas; inférteis, infrutíferas. E eu as deixo ir. Eu as nego. Não crio condições mínimas para elas nascerem. Vivo abortando palavras: eu, a negligente criadora. Palavracida, essa sou eu; uma assassina de palavras embrionárias. Penso que não tenho condições de as tê-las, de as parir. Boba que sou, nem percebo tantas vezes que o parto nunca é feito totalmente pela mãe; o bebê também precisa querer nascer. Se é tirado à força, sem atmosfera possível, se não é convencido de que vale a pena viver, que sua vida é possível para além da sobrevivência, o bebê escolhe morrer. Precário demais para o mundo.

Como manter-se e fazer-se constantemente sublime? Como fazer uso de seu espaço corporal e expandi-lo? Como não cair no funcionamento da fuga de si mesmo e permitir que nasçam flores de você? É isso que ela, que vive correndo afoita, se questiona, dia após dia. A qualificam de inquieta, de indócil, de insubmissa, de desassossegada. Que desassossego é esse que nos toma? O que a inquietude expressa, afinal de contas?

Viver correndo de um lado para o outro, sem saber ao certo aonde se quer chegar com tais corridas, cada vez mais velozes. Assim como o velho coelho da Alice: nervosamente indeciso, constantemente atrasado, oprimido pelo tempo. Antítese da menina, ele é esvaziado de vigor, potência e determinação, mas surge ao longo da história como motor que a faz seguir seu rumo. Sem um mínimo encontro com a opressora organização da cronologia, Alice se perde no tempo e no espaço e se esparrama de vez, tornando-se desforme.

A consistência temporal e espacial depende de alguma historicização. Mas o coelho nos mostra que a cronologia como único recurso nos escraviza. Se vivermos olhando para esse relógio, o corpo vira máquina para dar conta da performance exigida pelos imperativos discursivos que se apoderam desse corpo. O corpo entra em estado de sítio, em modo de emergência, e passa a ter como único propósito a manutenção da sobrevivência. Sobreviver é subsistir em situação de precariedade extrema, em terreno ou de acordo com regras inadequadas, inviáveis à vida fértil; após uma grande perda, após um choque, resta a nós a sobrevivência. O trauma instaura um modo automático de sobrevida, de vida sub-humana. O sujeito se torna um coelho branco, correndo infinitamente sem chegar a lugar nenhum.

E a Alice sem a sua antítese, o Coelho? Alice está entregue às suas sensações corporais, às suas pequenas percepções. As percepções são o início de qualquer história. Primeiro, vem-nos a sede pela escrita de algo. Em seguida, fantasiamos cenas, sons, paladares, tatos , cheiros... partículas várias que se mostram a nós cada uma à sua forma e no seu tempo e textura. A partir daí, buscamos recursos para contar essas histórias. Recursos linguísticos, sonoros, gestuais, geométricos... recursos possíveis. Contamos a nossa história em cada suspiro, em cada olhar, em cada refletir. Ao refletir, refletimos diante de um outro que pode, enfim, nos enxergar a partir de sua ótica, de seus poros, de seu tempo e textura.

Para tanto, é preciso parar um pouco. Suspender o tempo cronológico, expandir o espaço, torcer as fronteiras do possível, alargar o que me fora garantido por um outrem. A Alice não sabe quem é e, por não saber, expande suas fronteiras identitárias, seu tamanho físico, seu tempo hábil, criando fantasias e, com elas, realidade.

Como conjugar o tempo cronológico com o tempo de kairós, um tempo qualitativo, um tempo da experiência do momento oportuno? O Coelho e a Alice nos propõem essa reflexão. Cada um de nós encontramos (ou não) os meios de conjugar esses dois tempos, paralelos e inescapáveis à fruição da vida.

Nos ensina Alice que só podemos alcançar o impossível se acreditarmos que é possível. Cocteau concorda dizendo: "Não sabendo que era impossível, foi lá e fez".

Alargar o tempo e o espaço. Deixar o corpo crescer, diminuir, conforme a música pedir. Seguir o som, deixá-lo entrar nos poros. Instaurar um som no mundo, um som que mexa estruturas, um som que desafie condutas novas, um som que arrepie alguém.

A sobrevivência é um engodo, um castigo, uma mortificação: um fazer-se podre em vida. Diferentemente, podemos expandir a vida e incitar torções no aparelho mundano. Abandonar as roupas usadas, nos termos de Pessoa. Abandonar os velhos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares: à correria, à sobrevida, à penitência, ao desperdício.

Ser arrepiado pelo mundo e arrepiá-lo de volta: é para isso que estamos aqui. 



terça-feira, 14 de agosto de 2018

engatinhando em solo fértil



de flor em flor,
você me povoa de cores e texturas
e preenche essa floresta de espécies várias

a gente se encontra no meio das plantas
e se ama ali mesmo

e o mundo todo pára, os sons congelam
aqui dentro, volto-me inteira para você

você cura devagarinho
minhas antigas feridas,
beijando uma a uma,
pas pressée

nas cicatrizes,
você planta e rega novas flores
e eu descubro que o amor pode não doer

- eu sei que amor não se agradece, mas obrigada; obrigada porque seu amor me emociona em tal grau no tanto que ele embeleza essa floresta que eu simplesmente parei de me desmatar. 

você, destituído


não sou um filme pornô,
nem me interessam os seus desejos
de me objetificar
de tudo que é ângulo, de tudo que é canto,
travestindo-me de lolita e me dispondo
para você penetrar meus buracos e mente
se apossando do meu desamparo e apelo
e chamando tudo de amor;

minhas partes íntimas não estão à sua disposição
e todas as minhas partes são íntimas
e o que tem dentro também,
radicalmente íntimas

minha voz também é íntima,
privada, própria, pessoal;
e não quero mais me dirigir a você,
você escutou bem?

encontrei um martelo pelo chão
e estou destruindo cada partícula dessa ponte perversa
que me ligava a você

não encoste em mim, não quero ouvir um pio seu;
espero que tenha aprendido algo dessa história inteira
que, para ser inteira, tomou-me tanto:
tantos pe-
da-
ços;
que me deixou em carcaças, queimada, em carne viva
às custas dos seus caprichos,
da sua imagem,
da sua punheta

e você chamou de amor
mesmo eu dizendo que doía

hoje, sei que o amor não é você
sei que não é tudo sobre você,
hoje, não giro em torno de você
e sei que eu não vim ao mundo para te agradar
para que você, grato, me desse um lugar
ainda que esse lugar doesse
e não tivesse a minha cara
e fosse inóspito
e que nele eu tivesse que temer o tempo todo
o seu abandono
a sua desistência
o seu julgamento
a sua ira
e suas mãos ajeitando o meu decote
ou as suas falas dizendo que eu não podia isso ou aquilo
repletas de máscaras de carinho
"por preocupação"

"o que é meu, é seu; é nosso",
e você anunciava a proteção
de uma segurança claustrofóbica e terrorista;
os termos mentirosos de um contrato leonino
que regia os usos do meu corpo
cheio de letrinhas miúdas
e eu, míope que sou,
confiei cegamente
que aquele papel falava de amor

não,
o que é seu não é meu,
como eu sempre te disse;
e o contrário também se aplica:
o corpo é meu, as regras são minhas
e isso não é só um ditado pra você repetir
esquerdomachamente nos carnavais pela cidade;
e as invasões não mais serão toleradas

o que é seu não é meu,
e eu não começo onde você termina
eu vou além, me esparramo
em dimensão independente,
desconectada,
em plano outro,
em pele e matéria estranhas a você

você não dita minhas linhas,
meus limites,
meus gostos,
meus possíveis;
você não é minha fronteira
e não determina minha jurisdição
nas minhas terras;
pra falar a verdade,
você nem conhece minhas terras
e não tem visto para visitá-las;

você não dita mais nada
e eu nem faço mais ditado,
já sei muito bem escrever

já não choro mais na cama
ao seu lado, enquanto você dorme
e ronca e sonha
plenamente confortável
com a dor que me infringiu

assim como você,
aprendi a dormir confortavelmente
e não te apelo mais nada
(a não ser silêncio,
o único gesto de respeito
que eu exijo de você)

eu funciono apesar de você.

- eu não temo mais você.

vampiros

as ruas e espaços públicos estão repletos de bocas abertas
cheias de dentes que furam julgando
e julgam furando
tirando o seu sangue
te deixando anêmica
para que,
comparativamente,
esses sujeitos pareçam vigorosos
cheios de saúde,
ao sujeitarem você

escute-me,
sanguessugas e vampiros estão por toda a parte
e o sangue que eles usurpam de seu corpo 
alimenta as suas próprias neuroses

evite andar em seus guetos
ao encontrá-los, sorria
e diga não, gentilmente
evite o desgaste

como diz o meu analista,
"escolha as suas guerras",
jamais se venceu uma batalha
com frentes infinitas

há lugares por aí
onde nosso esforço reverberra
onde nós podemos existir
onde não nos fazem anêmicas,
pálidas, fracas

há espaços por aí repleto de seres
que não fetichizam nossa palidez,
que querem-nos transbordantes,
criativas,
móveis,
aquáticas

lembre-se:
fuja das pragas
voe, nade, ande,
e não deixe ninguém te parar

quinta-feira, 5 de julho de 2018

salto




bem quis que nos tivéssemos inteiros
sem nem piscarmos
prendendo o ar debaixo d'água

e haja fôlego para tanto,
pra sustentar pra mim mesma 
que poderíamos ser
o oxigênio um do outro

faltava ar todo o tempo,
o tempo todo;
os olhos ardiam,
eu me asfixiava

mas você se dizia feliz,
em sua melhor forma e fase;
enquanto eu via só via apatia

tentei ser paciente
busquei falhas em mim
escavei cavernas interiores
fundas, escuras, densas,
proféticas

encontrei tantas sombras
me perdi nessas sombras
pensando ser eu
toda a falha do mundo
e pensando sermos nós
toda a minha raiz
pensando sermos nós
toda a minha luz
(se e é que eu tinha alguma)

nós, a lanterna que guiava essas buscas profundas
nós, o espaço seguro ?
nós, a certeza

- mas certeza de quê?, eu me perguntava
e te perguntava em sequência

você me dizia: - de tudo, do que quiseres, basta escolher e eu vou atrás

passávamos diante de vitrines de lojas
baratas ou chiques,
enormes ou pequeninas
e, ao primeiro olhar meu,
você me dizia:
- você quer, linda ? eu te dou.

mas não era isso que eu queria
não é o que eu quero
e eu nunca estive à venda

em seguida, vinha-me aquela sensação,
a de queda livre

imersa numa solidão profunda
dentro da caverna escura do meu eu
e a lanterna queimou

eu berrava, pedindo ajuda
você vinha, mas não me via
nunca me encontrou nesses labirintos macabros
nunca entendeu as minhas trevas

pensava ser drama
e usava essa palavra
pra diminuir o que eu sentia
pra calar a minha boca

eu, que olhava pra dentro
e via infinitas feridas e garras
dores e maldades
recolhia-me mais e mais
e constatava mais uma vez
ser eu todo o mal

eu brigava e me debatia
numa guerra comigo mesma
a qual eu te permitia observar
como mero expectador,
voyeur de uma cena de luxúria
feita sob medida
especialmente para você

porque partícipe cê nunca foi;
diferentemente,
cê me deixou aos leões
e acreditava salvar-me deles
(ou seja, de mim mesma)
com uma penca de notas de reais
que de reais não têm nada
são apenas ficção de poder

assim como o poder que você tinha sobre mim:
ficcional

e a ficção é coisa à beça, eu sei
tanto sei que me faço exprimir
por essas palavras
até hoje

pego os meus restos
resquícios dessa história inacabada em mim
e busco encaixar em palavras

palavras as quais eu não gosto
me são amargas
indigestas
me trazem enjôo;
enjôo e dor

quando me percebo,
minha testa está enrugada
e eu pareço ter envelhido 5, 7 anos
em apenas 1
quase uma j.k.

minha cabeça toda dói
meu corpo está desforme
e eu não me refiro à estética da coisa,
quero dizer energeticamente desforme
não conheço-me minhas funções

meus destinos foram desequilibrados demais
chega a noite e, sozinha, sinto-me uma ameba
fracassada,
uma coitada;
sinto-me triste
e duvido de todas as minhas escolhas

me dá vontade de sair porta afora
correr, gritar
arrancar as roupas, me arranhar
e ir mergulhar na praia
depois de correr a lagoa inteira
para lá chegar

e quem sabe em seguida
me afogar nas águas de um mar abalado por uma ressaca tremenda
quem sabe ?

ou então eu poderia
sair correndo
pegar os poucos putos no bolso que eu tenho
comprar uma passagem pra puta que ainda não pariu
e ir viajar, apenas com documentos e roupa do corpo,
com a puta que eu sou
e de repente parir alguma coisa em algum canto novo,
mais fértil do que a infertilidade que se apossa de mim hoje,
parir um suspiro, uma história,
um rasgão nesse roteiro de merda
insosso, contaminado
tóxico até dizer chega
que ficou essa minha vida
depois que eu me dei conta
que nem eu te tinha
e nem você me tinha
e que nenhum de nós era oxigênio pra ninguém
e que nesse tempo todo eu tava respirando por aparelhos,
toda entubada

quero arrancar essas merdas de tubos
deixar tudo pelo chão
nesse hospital todo branco que me dói a cabeça
que me cega

e se for pra sangrar, eu sangro
adoro vermelho, não vejo problemas

se for pra morrer, também
todo mundo morre

a morte é bobagem,
coisa pouca
previsível e, quando chega, indolor
c'est fini, c'est tout

a vida é quem arranca a nossa pele
e cria outra por cima
queimadura em cima de queimadura

a carne viva é estado de alerta
onde a gente sente tudo
o gosto da pedra,
o cheiro do amor
o tato da noite
o som do espaço aéreo
e avistamos a solidão

arrebatados pelas sinestesias das tonalidades várias
de vida e morte,
sentimos medo

diante dele, por vezes nos anestesiamos
diminuindo-nos
comprimindo nossos pedaços, órgãos, agenciamentos
enquanto secam as nossas artérias

por outras vezes, saltamos
sabendo que o chão nos espera
mas, no ar, fazemos graça
rimos, criamos, gozamos
e perdoamos toda aquela merda de crença
que nos entubou por completo

danem-se os tubos
a louca está à solta
avisem os seguranças
para desistirem

não trabalhamos com contenção de danos
a vida é rabiscar, quebrar, deixar marca nos muros,
nas ruas, palacetes,
e corpos por aí afora

louca, solta, eu desliguei os aparelhos
e nem você nem ninguém
nenhum eu interno
vai me impedir de dançar