sábado, 10 de março de 2018

Fotografias

Hoje, acordei repleta de saudades de mim. Busquei-me em cores, sons, texturas e ritmos. Encontrei imagens estacionadas em formato de fotografia. Senti-me nessas fotos, revivi momentos, ideias, encontros. Sorri por dentro. Será que será que será que será? De retalhos, montamos e costuramos colchas, redes, histórias, obras. Nos costuramos na pele, como quem continuamente leva pontos (sutura). Abre-se, fere-se, costura-se o coração. Esse, o coração, se localiza em toda a extensão do corpo. Ele pulsa, ele vibra, ele cansa, ele dói. Ameaça se apagar com paralisia e nós buscamos manter alguma chama acesa, mesmo diante da ventania e dos tempos de queimadura que rasga e borbulha a pele. Sob a pena de viver sem fogo, sem calor, numa apatia institucionalizada que muitos simplesmente chamam de vida adulta - ou de vida real. E o que é essa tal da realidade? O que é essa estranha para cada um de nós, subjetivamente? A realidade não é senão como vemos e sentimos o nosso entorno? E quem disse que tem forma definida? Quero dizer: quem em nós nos disse a nós mesmos que o mundo é um só? Que nossa vida é linear, precisa e unívoca? Quem aqui que nunca morou em seus abismos e flertou com a queda livre, entre medo e desejo, em promiscuidade com os seus próprios fantasmas? Quem é que nunca conheceu o sentimento de vertigem de si mesmo? Sem nunca ter sido vertiginoso, sem nunca ter conhecido as areias movediças de seus rastros, o indivíduo não foi marcado. Não virou sujeito. Nasceu assujeitado? Não, não nasceu. Ninguém nasce assujeitado. E o assujeitado de hoje comporta em seu negativo o sujeito, o afeto, a potência, o corpo erotizado. Para além de um corpo-máquina, somos pulsionais. Esse de quem falamos fechou-se, por fim. Como disse Manoel de Barros um dia, e aqui sou eu parafraseando o mesmo, supondo que entendi o que ele escreveu. E não entendi? Será? Absorvi com o corpo, costurei na carne-coração o meu sentido, frágil, fragmentário, flutuante, a-ser-desfeito-e-refeito, tatuagem móvel, oceânica, plástica e quebradiça e, a partir disso, estou aqui a brincar com as palavras, a fazê-las dançar, morder, gritar e sorrir. Escrever amarra, escrever sutura, escrever constrói. E escrever abre, escancara, aponta farsas e hipocrisias que sustentamos para nós próprios. Por medo. E, afinal, medo de quê? Do absurdo, do ridículo, do real, da tola ferida narcísica que dói em todos nós, embora tola. A verdade é que somos todos tragicômicos, risíveis e humorados. Ah, como somos pequenos! Pequenas partículas luminosas-lamparinas-vagalumes. E, como digo a partir da antropofagia que faço com o Manoel (aquele, o de Barros), ingerindo, incorporando e vomitando-o cheio, repleto dos meus restos melosos, grudentos e ambivalentes: assujeitados, nos fechamos do quê? Ao que deixamos de nos expor? O medo nos protege e priva do quê, afinal? Da fraqueza, do desalento, do amor, do poema. 

Mas é do desamparo que nasce a arte,
precária que só ela 
(pois humana, obra de corpos humanos)

Pobres e abençoados pequenos seres
cintilantes, nosotros